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terça-feira, 1 de março de 2011

Nós, os Carniceiros


            Dias a trás, uma das seguidoras deste humilde blog postou em seu MSN o link de um vídeo, uma espécie de mini-documentário, cuja apresentação ilustre é conferida ao ex-beatle Paul MacCartney, que pode ser assistido no endereço http://www.youtube.com/watch?v=FgavacZ_47Q&feature=player_embedded#at=31. Torna-se obrigatório que o leitor assista-o. Darei apenas algumas informações gerais a seu respeito, apenas para gerar uma breve argumentação. Ao assisti-lo, em um primeiro momento, percebe-se que há a nítida militância de vegetarianos ao redor do mundo, ligados a outros movimentos, que lutam para banir o consumo de carne das nossas mesas. Este blogueiro, carniceiro confesso, viu-se impressionado com as imagens e, por tal razão, houve a necessidade de remeter algumas linhas, ainda que chulas, sobre a forma com que nós nos apropriamos das coisas da natureza, entre elas os animais.
            Para além da militância vegetariana; para além da brutalidade exibida pelo ex-beatle em seu documentário, reside a forma predatória e utilitarista que damos aos recursos naturais. Isso passa despercebido pelo telespectador, que é involuntariamente induzido a sentir pena dos bichinhos dos quais nos alimentamos. Há a apelação para o emocional de quem o assiste, contudo, o problema é muito mais amplo; muito mais complexo. O historiador inglês Keith Thomas em um brilhante estudo sobre a relação do homem com o mundo natural na era moderna questionou-se a este respeito.
            Thomas fez um levantamento sobre a forma pela qual os homens se relacionavam com a natureza. Uma das marcantes constatações feitas pelo historiador diz respeito à exclusão do homem da natureza. Ao excluir-se do mundo natural, o homem passou a ver a natureza de uma forma hierárquica, colocando-a abaixo de si. Logo, dentro desta lógica, ela ganhou uma roupagem utilitarista. A legitimação dos homens ocidentais para tal comportamento, na linha explicativa de Thomas, encontra-se nas “sagradas” escrituras da bíblia; mais precisamente no livro de Genesis. Adão e sua mulher Eva, na história bíblica, como todos sabem, comeram do fruto proibido e foram expulsos do paraíso.
            Ao quebrarem o contrato com deus, Adão e Eva abriram mãos da comida farta, da natureza amiga e generosa, onde não era preciso trabalhar para prover o próprio sustento. A expulsão do paraíso significou para o homem sua introdução em mundo cruel e inculto em que era preciso sobreviver. Este lugar é o planeta que nos abriga. Para isso, no entanto, era preciso enfrentar o mundo natural, impor-lhe a vontade de deus que obrigava ao homem a trabalhar, ou seja, transformar a natureza através da técnica. A interpretação feita a partir de Genesis, pelos ingleses da era moderna, conferiu ao mundo natural subserviência e hierarquia, pois a natureza, obrigatoriamente, teria que servir ao homem. A terra serve para o plantio, as plantas para consumo, construção de casas e armas, os animais para alimento transporte e assim por diante. O homem, a partir disso, realizou sua imperiosa atividade de transformação do mundo natural, o qual teria sido feito por deus para servir a vontade humana.
            Ao longo da história, o homem nada mais fez do que isso. Subjulgou as criaturas e excluiu-se da natureza, a ponto de não se reconhecer nela. De caçadores e coletores evoluímos para o agronegócio e para a produção intensiva de animais em cativeiro de modo a alimentar um gigantesco mercado consumidor, conectado ao resto do mundo. A produção, por sua vez, em maior ou menor grau, depende das regras e dos códigos capitalistas de mercado. Transformamos, praticamente, toda a matéria extraída da natureza em mercadoria. São trilhões e trilhões de moléculas de carbono que diariamente abandonam o solo, plantas e animais impulsionando as economias do nosso globo terreno.
            A forma cada vez mais predatória com que o homem passou a tratar o mundo natural provocou na década de 1960, por exemplo, crises na obtensão de matéria-prima e o surgimento de ativistas como os do Green Peace. Hoje, contudo, se fala em desenvolvimento sustentável em que é prevista uma relação de produção harmônica com a natureza. Entretanto, isso é muito recente na história da humanidade se comparado ao que fazemos desde aproximadamente cinco mil anos a trás. Construímos gigantescas cidades, hoje em concreto, e a admiramos – nos orgulhamos delas. Elas são praticamente nosso refúgio, nossa ilusão virtualmente criada, para nos defender do mundo natural, da barbárie dos insetos, dos ventos e das chuvas que sujam nossos corpos e de todo e qualquer animal, que se não serve para comer é, necessariamente, nosso inimigo.
            Carlo Rodrigues Brandão, antropólogo brasileiro, afirma em seu livro Somos as Águas Puras que a forma hierárquica com que olhamos para a natureza é mesma que usamos em nossas relações sociais. Para Brandão, as relações sociais, nada mais são, do que projeções da relação que temos com mundo natural. Se a natureza nos serve e foi criada por deus para isso, então outras pessoas tiveram o mesmo destino na divina providência. Extratos superiores, extratos inferiores, homens que servem a outros homens; tudo isso encarado de forma naturalizada, quase inquestionável no interior das relações humanas. Assim, se não nos vemos entre iguais entre nós mesmos, homo sapiens, como veríamos ou admitiríamos consciência em meros animais que servem, e, teriam sido criados por deus, para alimentar-nos? Não adianta apenas abolir a carne de nossos cardápios como sugere o vídeo de Paul MacCartney. É necessário, antes de tudo, uma nova forma de nos relacionarmos com mundo natural. E isso, pode levar muito, mas muito tempo.
            Nossa vida neste planeta, porém, daqui para frente, se tornará possível apenas se houver, como já vem acontecendo desde a década de 1960, contestação ao modelo de produção das sociedades humanas. Matar animais de maneira aparentemente cruel é apenas parte de uma cadeia complexa de envolvimento que temos com mundo natural e com nós mesmos. Não basta apenas lamentar-se ao ver cenas de carnificio animal, horrorizar-se com sangue e com o sofrimento deles. Matamos-nos diariamente, e segregamos outros biologicamente iguais a nós, mas que, no entanto, por possuírem modos de organização, ideologias e crenças diferentes das nossas acabam sendo empurrados para as margens de nosso mundo social.
                  Enquanto não nos reconhecermos como parte de uma mesma coisa, nós frente ao mundo natural e a nós mesmos, continuaremos comendo xisburguer e churrascos em verdadeiras jornadas gastronômicas aos domingos; e o que é pior, não nos reconheceremos como iguais.
            É o que pensa o humilde autor deste texto.
             

4 comentários:

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  2. Teu texto toca direto em uma das questões mais prementes, hoje: a dificuldade de nos pensarmos como coletividade, e mais, como um coletividade dotada de isonomia (igualdade de direitos e deveres).
    Lembrei Bauman. E lembrei também o maravilhoso verbete "Domesticação", da Enciclopédia Einaudi, escrito por Jacques Barrau.

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  3. Muito bom teu texto Max. Como autora da postagem do link que trouxe a tona tua reflexao, gostaria de salientar que justamente por nao concordar com o apelo visual do documentario e que postei e divulguei ele. Nao gosto desta forma de abordagem porque acredito que ter pena simplesmente nao basta, mas desencadeia.
    O que me incomoda e o fato de o ser humano acreditar que existe uma hierarquia sobre os seres vivos, e saber que o homem usa tudo de forma pragmatica sem questionar a verdadeira necessidade, e o exagero, o egoismo e a inconsequencia. Assim como nao sao respeitados os animais, o proprio ser humano e despido de sua dignidade e de seus direitos, em prol de outros seres humanos que nao estao nenhum pouco preopados com quem ou de que forma estao prejudicando os demais. Provavelmente meu discurso pode soar como moralista, ambientalista ou como uma tendencia espiritualista, mas acredito que o ser humano precisa superar o egoismo e pensar mais em como se portar e em como viver em maior harmonia consigo mesmo e com o mundo. Isso engloba a ideia de viver de forma mais honesta e justa com outros seres humanos, consigo mesmo e com a natureza.
    A questao do vegetarianismo, engloba mais que parar de consumir carne. Este e um assunto muito complexo para ser pensado e discutido em tao breves linhas, porque engloba muitas outras coisas (como saude, bem estar, economia, poder, religiao, cultura, etc...). Mas minha intensao funcionou bem, queria plantar justamente uma semente de reflexao, que espero que seja mais ampla que uma discussao historica ou sociologica e que possa ser desenvolvida nos dias que seguirem esta postagem.

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