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sábado, 2 de abril de 2011

Agradeço aos amigos e, também, aos demais que frequentemente acessam este blog, ainda em fase experimental. Tenho tido pouco tempo para escrever, mas sempre que possível tentarei dar certa regularidade aos escritos. Escrever sem compromissos é uma atividade paradoxalmente cheia de responsabilidades. No caso dos contos presentes neste blog, em especial a série Devaneio Urbano, representam certos aspectos do que pensa seu produtor a respeito da sociedade em que vive; eis a responsabilidade. Desde já, peço desculpas por qualquer equívo, transtorno ou qualquer tipo de desconforto que a leitura destes contos possa produzir.

Muito obrigado a todos, e continuem acessando!!

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Blog do Madruga: Devaneio Urbano: O Guardador de Carros

Blog do Madruga: Devaneio Urbano: O Guardador de Carros

Devaneio Urbano: O Guardador de Carros

Durante muitos anos, na mesma rua, um homem de meia idade guardou carros. Chamavam de Seu Carlos. Antigo morador das ruas da grande metrópole, encontrou um meio de desempenhar sua atividade que proporcionava algumas míseras moedas cujo destino era o conhecido bar do Caçapa, local em que comprava cachaça. Era um destes bares operários onde muitos deles faziam sucursal de suas casas. Seu Carlos era um frequentador de carteirinha. Para os que o conheciam, era difícil vê-lo sóbrio. Vivia, em maior parte, de doações dos moradores da Rua das Alamedas, lugar onde era guardador de carros. Poucos se perguntavam sobre seu passado. Deixavam-se levar pela impressão primeira causada pela figura de um homem, que aparentava cinquenta anos, de barba espessa, olhos arregalados, magro, pardo e pouca estatura. Andava mal vestido, roupas sujas e rasgadas, cabelos grisalhos e voz sempre rouca devido ao uso excessivo de cigarros.
Seu Carlos tinha sido um homem modal como qualquer outro. Casou-se jovem; aos 20 anos. Com emprego fixo, teve uma esposa e dois filhos. Teve casa própria e até um carro. Desempenhou papel de metalúrgico por 17 anos ininterruptos. Mas era após o expediente de trabalho que Seu Carlos aspirava maior simpatia durante os dias de sua vida. Diariamente, ia com outros colegas de trabalho a um bar que ficava próximo da empresa onde trabalhava. Lá, seu Carlos bebia tudo quanto não podia. Não foram poucas as vezes em que seus colegas tiveram que conduzi-lo até sua residência, devido a embriaguês profunda. Sua mulher, que trabalhava o dia todo, ficava muito irritada com as bebedeiras do marido. Se todos que bebem precisam de um motivo, onde está o de Carlos? Assim se perguntava sua esposa. Ela não compreendia.
Na verdade, a sociedade imprime modelos perante seus membros. Contudo, sua esposa não conseguia perceber. Carlos, trabalhador e pai de família, deveria em sua trajetória, ser nada mais do que isso. Porém, após o trabalho, depois de suas bebedeiras, vinham as farras. Ele gostava de frequentar casas de tolerância. Entre as prostitutas contava sua história de vida que, certamente, ninguém fora dali, em qualquer outro lugar, estaria disposto a ouvir. Passou a viver uma vida de perdição, entre o alcoolismo e o adultério. Sua esposa, cansada da situação, acabou pedindo separação. Depois disso, Seu Carlos teve que ir embora de casa. Sua vida de alcoólatra levaria ainda ao desemprego e, depois da demissão, Carlos nunca mais voltaria a trabalhar como assalariado. Questionava sua existência e não compreendia o porquê de ter perdido sua família e seu emprego.
Em meio às intempéries da vida, Seu Carlos encontrava no álcool, em tempos de operário, seu refúgio. Em seu estado sóbrio, sentia-se como um suicida a beira de um abismo. Sedento de seu néctar, conversor da realidade em ilusão etílica, voltava-se para si e percebia que os prazeres da vida mundana lhe proporcionavam um local privilegiado em sua miserável existência. Como trabalhador assalariado ele era apenas mais um, sem face, sem nome; enfim, qualquer um que anda por aí sem importância alguma, daqueles que não se dá à mínima. Mas em suas aventuras, nas boates, comprando seu prazer, demonstrava certo poder que socialmente lhe era negado. Afinal, ele não era ninguém importante. Mas as dançarinas chamavam por seu nome. A cada vez que isso acontecia, ele se sentia mais vivo; mais importante. Via nos olhos delas que estavam mentindo. Diziam para ele que o amavam e que ele era alguém especial. Sabia que era tudo parte do plano daquelas notáveis e volupituosas mulheres para tirar-lhe o dinheiro. Mesmo assim, desviava os rendimentos de seu trabalho da dispensa de sua casa para os quadris das dançarinas. Pagava-lhes bebidas caras, do tipo que sua esposa nunca imaginara a existência.
Por ter levado esta vida boêmia, Seu Carlos perdeu sua família e, devido as constantes ressacas, viria perder seu emprego. Depois disso, viveu na desgraça completa. Transformou-se em andarilho das madrugadas, revirando latas de lixo e juntando cigarros do chão. Perdeu a dignidade, e vivia como um homem sem história, embora tivesse muitas para contar. Por quatro anos viveu assim. Tempos depois, conseguiu moradia no albergue da cidade, junto a outros mendigos. Um dos albergados conseguiu para ele uma vaga de emprego informal. A remuneração não era lá essas coisas, porém a aceitou. Tratava-se de uma vaga de guardador de carros no estacionamento da Rua das Alamedas. Ali, Seu Carlos experimentou de certa prosperidade, depois de sucessivos anos em desgraça. Ganhou um quarto no estacionamento, com televisão, cama, fogão e geladeira, fazendo com que ele abandonasse o albergue. Seu patrão negociou com ele a moradia por redução de salário; ele aceitou.
Ganhava um quarto do que era pago aos demais funcionários do estacionamento. Com este dinheiro, comprava cigarros e bebidas. Mantinha-se constantemente alcoolizado, porém, mesmo que o álcool alterasse seus sentidos, conseguia executar sua tarefa sem maiores problemas. Na verdade, ele bebia as escondidas. Mas, seus colegas no estacionamento sabiam o que ele ia fazer a cada vinte ou trinta minutos no interior de seu quarto. Seu Carlos sentia-se solitário. Tinha saudades da família. Arrependia-se de ter sido tão estúpido. Culpava-se por toda a série de acontecimentos que o levaram a estar ali; naquele momento. Novamente, o que lhe ocorria como consolo era se afogar na bebida. Sabia que ninguém se importava com ele. Tinha consciência de sua condição. Não tinha com quem passar o natal e o réveillon, não tinha quem lhe desejasse feliz aniversário ou que lhe confortasse as angústias. Era só por completo. Sua única companhia era ele próprio, entorpecido e vagando pela escuridão das madrugas.
No estacionamento, muitos o olhavam com indiferença. Imaginava que as pessoas que o olhavam pensavam que ele não era gente. Algumas até podiam sentir pena. Mas, de fato, o desprezo era mais evidente. Em uma noite de carnaval, o estacionamento estava lotado. Seu Carlos havia sido convocado para manobrar um carro importado, que pertencia a uma refinada jornalista. Neste instante, a embriaguês o traiu e, quando se deu conta, já havia batido o carro. Furioso, seu patrão o mandou embora naquele mesmo instante. Mesmo implorando, Seu Carlos teve de deixar o estacionamento. Desde então, seu endereço foi as calçadas da Rua das Alamedas. Tentava sempre arrancar algumas moedas dos figurões que deixavam seus carros estacionados ali; um pouco mais distante do estacionamento onde trabalhou. A vizinhança sensibilizou-se com aquele homem que dormia pelas calçadas. Davam-lhe comida, água e algumas roupas. Observava que até os cães abandonados tinham melhor sorte. Sempre havia alguém disposto a tirar um animal das ruas, porém, nunca um homem.
Aproximava-se o rigoroso inverno. As madrugadas, cada vez mais gélidas causavam-lhe grande desconforto. Em uma destas noites, Seu Carlos, acompanhado de uma garrafa de cachaça junto ao corpo, resolveu procurar um lugar para dormir. Andava com muitas dificuldades devido à embriaguês avançada. Respirava com o peito quase imóvel devido a um visível quadro de hipotermia. Os termômetros marcavam cinco graus negativos aquela noite. Seus trajes eram uma calça jeans velha, um blusão feminino doado por uma moradora da Rua das Alamedas. Sobre o tórax levava um casaco com carapuça. Enrolou uma camiseta, outrora de um bloco de carnaval, ao rosto, na tentativa de diminuir o frio. Durante sua busca, por um melhor lugar para passar a noite, Seu Carlos colecionou muitas quedas durante o trajeto. Falava ao vento, e quem via não entendia nada. Para alguns, tratava-se de um louco. Para outros, apenas mais um destes vadios que andam pelas ruas.
Seu Carlos, na verdade, assumiu sua condição de homem sem nome, sem face, desconhecido e não lembrado. Em suas ideias vãs, lembrava-se de toda sua vida, que a partir daquele momento esvaia-se na madrugada. Caiu mais uma vez e, depois de muito esforço, levantou-se novamente. Olhou para as luzes nos postes, reparou no rosto das pessoas e na forma com que olhavam para ele. Olhava para a avenida e no intenso movimento de carros. Deu mais alguns paços e caiu mais uma vez. Tentou erguer-se; ficou de joelhos. Sentia muito frio. Com extrema dificuldade, conseguiu erigir o corpo. Andou até o viaduto e ali fez sua pernoite derradeira. Caiu em baixo do viaduto e, desta vez, não se levantou mais. Já não via mais o brilho das luzes nem o movimento.
Sentiu sono, sede, frio e solidão. Caiu de costas para a calçada que, desde então, passou a roubar-lhe o que restava de calor de seu corpo. A garrafa, quase vazia, rolou para longe e já não conseguia mais busca-la. A noite fria atuava como facas em suas entranhas. Derrepente começou a perder sensibilidade no corpo inteiro. Olhava para cima e tudo que via era o concreto do viaduto. Seu corpo preparava-se para o estado de óbito. Seu Carlos morreu aquela noite, em baixo de um viaduto, vítima de hipotermia. Antes de morrer imaginou que ninguém viria lhe buscar, ou mesmo lhe procurar. Pela manhã, logo cedo, a polícia encontrou seu corpo sem vida. Não havia documentos. Ao buscarem por informações, descobriram que seu Carlos era morador de rua. Os moradores da Rua das Alamedas acusaram que o conheciam e que lhe prestavam alguma ajuda.
Sem ser possível saber de sua identidade, não se encontrou nenhum parente. Nem mesmo os amigos de farras ficaram sabendo. Na verdade nunca o procuraram, após a demissão da metalúrgica.  Ele foi enterrado como indigente. Seu Carlos, talvez tenha compreendido o valor de um homem durante sua existência. Alguns nascem invisíveis, outros são iluminados pela luz. Os primeiros, ao tomar consciência disso, entregam-se ao devaneio e sucumbem a própria sorte. Vivem no anonimato, na invisibilidade e no fundo sabem que milagres não existem. Não há luz para eles. E no final, tentam tornar real o que sentem e virtual o que são sutilmente levados a acreditar. Bebedeiras, mulheres e amigos de bar. Enquanto pôde, Seu Carlos construiu sua utopia contrastada com o mundo social em que os homens são escravos de suas próprias regras. Neste mundo, o sucesso é medido pelo respeito a elas. Aos demais, fica assegurada a sorte de uma vida infeliz e uma morte desgraçada.