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segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O Enigma de Kasper Hauser

No ano 1828, num lugar próximo a Nuremberg, hoje na Alemanha, houve um caso misterioso de um jovem que viveu boa parte de sua vida acorrentado em um Porão. Era alimentado por um homem estranho que o castigava. O nome deste jovem era Kasper Hauser que tinha na clausura do porão e nos grilhões das correntes que o aprisionavam o único mundo que conhecia. Kasper não possuía nenhuma habilidade motora e nenhuma capacidade cognitiva desenvolvida; vivia quase em um estado vegetativo e não possuía nenhum tipo de sociabilidade.

            Certo dia, o homem o qual alimentava o jovem acorrentado, resolveu ensinar-lhe a escrever. As únicas coisas que Kasper aprendeu foi o próprio nome. Depois disso, o homem o libertou levando-o até uma vila próxima a Nuremberg onde o abandonou em uma praça. O fato chamou atenção dos moradores que, de início, acharam que Kasper pertencia à nobreza. Depois de um tempo, dois anos mais ou menos, Kasper havia ampliado seu vocabulário e dominado maior precisão motora. Com ajuda dos habitantes do lugar, aprendeu a fazer tricô, tocar piano e algumas técnicas de jardinagem.

            Esta história é narrada no filme cujo título em português é O Enigma de Kasper Hauser, de 1974, dirigido por Werner Herzog, baseado em uma história real. Para quem não viu o filme, vale a dica, é bom ver. Mas não estou simplesmente propagandeado-o. O que tenho para mostrar aqui é uma atividade que foi desenvolvida em uma das disciplinas do curso de graduação em história, o qual cursei entre os anos de 2005-2010. A atividade me chamou a atenção porque a professora solicitou que cada um de nós escrevesse um texto, tomando a história de Kasper Hauser como base, abordando uma situação semelhante, em que nós alunos, seriamos responsáveis pela socialização de um sujeito nas mesmas condições de Kasper.

            Isso, para mim, suscitou pensar na educação formal e em sua estreita relação com a democracia. Enquanto educadores, o que ensinamos? E para que ensinamos? A partir destas perguntas, foi construído o texto que segue abaixo, entregue a disciplina, e que compartilho neste blog com o propósito de refletir, não apenas no papel do educador, mas também no tempo que forma este educador e nos fragmentos de coisas as quais ele julga necessário ao aprendizado de seus educandos. Vamos ao texto:



Democracia: um uniforme?

Podemos dizer que muitas escolas, não só no Brasil, funcionam como “porões”. Nelas, estão escondidos e, aprisionados, muitos Kasper Hauser que, na tentativa de se incluir, boa parte das vezes, acabam sendo excluídos; principalmente aqueles que contam com poucos recursos materiais e econômicos. O educador, no entanto, revestido da mais pura preocupação (nem todos é verdade) de incluir um aluno à sociedade acaba o uniformizando. Leva-se a ele a “civilização”, como a forma mais avançada da organização humana. Por muitos séculos, antes de nós, muitas sociedades chocaram-se umas contra as outras para, enfim, definirem por meio das armas, qual seria o modelo civilizador mais apropriado.

Poderíamos, aqui, nos reportar aos reinos e impérios da antiguidade, dos egípcios até Alexandre O Grande, dos romanos até os conquistadores europeus de fins da Idade Média. Poderíamos ainda falar dos grandes impérios ameríndios, ou dos Estados expansionistas da Era moderna. Todos estes levavam modelos, carregavam em si “propostas” de organização sendo colocadas e “apresentadas” entre a alteridade e a negociação. Esboçavam um conjunto de regras sociais que diziam aos homens, de uma forma ou de outra, como agir e como pensar, para onde seguir, para onde não ir e, ao longo dos séculos, esta forma de organização, desigual e segregacionista, foi reproduzida quase que de modo inconsciente por nossos antepassados.

A humanidade produziu e, presenciou, uma guerra em escala global durante os anos 1914-1918, em que se disputava qual seria a “fórmula” mais convincente de civilização. Ela, no entanto, paradoxalmente, deu lugar à autofagia humana e, durante o século XX, a obscuridade das ações do homem ganhou outros nomes, como socialismo, capitalismo, neoliberalismo e outros tantos “ismos”; todos estes ditando regras, carregando em si modelos perversos de segregação. A uniformização, aqui, entendida como um conjunto de regras que, apresentam de modo um tanto persuasivo idéia de civilidade, é colocada nas escolas de forma naturalizada. Muitos valores, artifício da criação humana, ao longo dos séculos, como ler e escrever, por exemplo, não são contextualizados e, assim, muitos alunos não percebem sua importância.

Neste sentido, todos estes valores, que nada mais são do que construções sociais – artifícios da genialidade humana – funcionam como o estabelecimento de padrões. Hoje, por exemplo, todos os homens devem saber ler, escrever, trabalhar, consumir e se possível ter filhos. Esta organização é colocada como padrão atual de nosso mundo e, com isso, tentamos “impor” esta construção nas escolas. Mesmo que esta ideia pareça hegemônica e impossível de ser driblada, podemos entender os homens que optaram em viver fora deste padrão (marginais) como os Kasper Hauser do século XXI.

            No entanto, esta opção é condicionada, em maior ou menor grau, pelos “calabouços pedagógicos” que são algumas escolas. Dizemos aos alunos o que eles devem ser – na verdade é o que a sociedade espera deles –, mas não os ouvimos. Esquecemos-nos de perguntar o que eles querem ser. Tampouco levamos em conta suas habilidades que fazem parte de suas identidades e, portanto, diz o que eles são. Conformam o modo pelo qual eles dão sentido ao mundo em que vivem; enfim, são suas representações sociais. Não trabalhamos com as diferenças e, sim, com padronização que representa tudo o que a sociedade espera de uma pessoa. Quando elas não correspondem à uniformização, dizemos que estas pessoas (alunos) são desqualificadas.

            Assim, servem de justificativa para a reprovação e, possivelmente, estes reprovados partam para modos alternativos de vida (criminalidade). Talvez até encontrem algum significado para suas vidas, que foram desprezadas pelos modelos formais de socialização. A Educação, dentro do processo escolar, trata de maneira homogênea, tanto alunos quanto professores, sob pretexto de democracia. O problema que pode ser levantado em torno disso, em minha opinião, é a inclusão em que, ao mesmo tempo, pode ser exclusão.

              Podemos ensinar tudo aquilo o que consideramos essencial e, também, o que os conteúdos programáticos recomendam, mas se não levarmos em conta o que os alunos sabem, e o que querem e, de acordo com suas habilidades, estaremos os uniformizando. Mas a pergunta é: será que temos como fugir disso? Será que devemos criar alternativas? Em relação ao filme Kasper Hauser, protagonista da narrativa cinematográfica, ele aprendeu tudo o que seus mestres acreditavam que seria indispensável para sua vida.

            De maneira análoga, um professor faz o mesmo. A diferença é que cada tempo produz um tipo de homem, e cada homem produz um tipo de conhecimento. Conhecimento que se acumulam e que são destilados às gerações subsequentes. Na antiguidade clássica, grosso modo, estes conhecimentos dividiam-se em saber cultivar o solo e obter destreza nas artes da guerra; na era medieval; temer a deus e cumprir juramento a reis e outros senhores feudais. Já na era moderna, as obrigações giravam em torno do respeito às leis e aos propósitos do Estado, e hoje?

            Dentro deste universo multipolar contemporâneo, encontramos muitas formas de ensinar e de aprender, sendo praticamente impossível apontar uma forma mais errada ou mais correta de se fazer isso. Levando isto em consideração, como se ensinaria hoje uma pessoa nas mesmas condições de Kasper? Poderíamos pensar que seria mais fácil do que no século XIX, ou do que em qualquer outra época. Kasper aprendeu a tocar piano. Era capaz de executar músicas de grandes compositores eruditos como, por exemplo, Beethoven. Naturalmente, tocar piano não é uma atividade indispensável à sobrevivência humana, mas no século XIX, tinha muita importância – mostrava refinamento.

            Um humano só aprende a ser humano, obviamente, com outro humano. Um humano só a prende a não errar vendo outro humano errando. Somos nossos mestres, e aprendizes, nossos salvadores e nossos piores inimigos. Somos nossos matadores e nossas próprias vítimas; nossos mártires e heróis. Considero isso indispensável em qualquer aprendizado e, portanto, isso não faltaria nas lições de um Kasper contemporâneo. Não há como não se frustrar, nem como não se sentir discriminado, porque isso também faz parte do aprendizado.

Inevitavelmente, eu reproduziria os valores e normativas sociais da minha época, com todas as falhas e acertos, mas quem julgaria isso seria ele. Não esperaria que ele se tornasse igual a mim, tampouco menor ou maior, mas que fosse Kasper. Mostraria o possível, os caminhos já trilhados, mas quem os escolheria seria ele próprio. Mesmo que isso possa representar respeito à suas escolhas, não significa que seja o mais correto, porque o que aprendi advém de uma experiência que não é a sua e, nesse complexo envolvimento, além do trocadilho, significa, de certo ponto, autoritarismo.

            No entanto, a experimentação de Kasper, seria diferente da minha, porque somos naturalmente diferentes. Por tal razão, considero problemática a questão da uniformização. Contudo, os limites são necessários, entre eles, e o mais importante, o respeito à vida, não só dos homens, mas por tudo que é vivo. Não se trata de um discurso romântico, clichê de candidatas à miss universo, cujo significado reside no “amor a natureza”, mas de uma questão muito prática e até funcionalista – precisamos dela. Nossa vida neste planeta depende de nossas ações e Kasper teria que aprender isso de uma forma ou de outra.

            Ao reproduzir meus conhecimentos à Kasper estaria lhe entregando conhecimentos de pelo menos cinco mil anos, acumulados, destilados e transformados ao longo das gerações. Conhecimentos que acompanham a humanidade e fazem dela o que ela é e, ainda, ajudará no que ela ainda poderá ser. Mesmo se tratando de uma tosca cidade do extremo sul do Brasil, como Santa Maria (RS), Kasper receberia estes conhecimentos que são comuns a todos, ainda que muitos o desprezem por achar que a história, enquanto ciência, não é importante, e que nada tem a acrescentar em suas vidas.

            E se Kasper Hauser assim fizesse, diria a ele que mesmo não reconhecendo a importância dos conhecimentos históricos, acumulados ao longo dos tempos, diria que a história é a lei geral dos homens, da qual não podemos escapar. Mesmo que ele dissesse que nada tem com isso, diria a ele que sua negligência social estaria contribuindo para deixar as coisas como estão, demonstrando, assim, sua parcela na constituição no todo social. Diria ainda que ele pertence a uma época, e que seria lembrado como alguém que viveu nela, talvez não como o Kasper, quem sabe como alguém anônimo; uma experiência única diluída em uma grande ordem coletiva.

            Kasper teria que aprender muitas coisas por si mesmo. O máximo que eu poderia fazer seria levar as coisas até ele, mas quem diria o que serve e o que não serve seria ele mesmo. Quando uniformizamos o mundo, não damos chance para que se vejam nossas falias que se naturalizaram; cristalizaram, e que nos cegam. Mas se deixarmos que outros as vejam, estaremos contribuindo para que aconteçam mudanças. Kasper poderia ser um senador, deputado, presidente, professor ou um ativista de qualquer movimento, se perceber o que há de errado em seu mundo.

            Mas, também, poderia ser um assalariado, pacato, modal, apático e aparentemente alienado das grandes decisões sociais, contudo, eu diria que nem mesmo isso invalidaria sua existência. Para quem ensina torna-se difícil lidar com as diferenças e, assim, o educador se torna egocêntrico – onipotente. Ele acha que sua visão de mundo é a mais correta, e por tal razão, se tornaria doloroso ver seus aprendizes se tornarem homens explorados por outros homens, assalariados ou ainda exclusos da socialização formal. Mas isso, no entanto, da perspectiva dos aprendizes pode ter outro significado.

            Poderia até existir debates para que houvesse uma mudança de pensamento, mas aí, novamente, se estaria uniformizando. Kasper teria que escolher, entre vários caminhos, um que lhe garantisse uma certeza frente a outras tantas incertezas. Dentro desta complexa trama, eu apresentaria a Kasper os caminhos que eu já percorri, e os resultados obtidos  e nada mais. Mostraria o horizonte, mas quem escolheria a direção seria Kasper. Não esperaria que ele escolhesse qualquer caminho já trilhado, tampouco o forçaria a escolher um inédito. Isso teria que ser pensado por ele mesmo, de acordo com suas frustrações e com tudo que lhe foi possível aprender ao longo da socialização de esperanças e incertezas.

Dentro da conjuntura atual de nosso mundo, ainda que possa significar uma generalização, de certo ponto leviana, não penso que estamos aptos, ainda, em lidar com as diferenças, mesmo que já existam debates imemoráveis a este respeito. Ainda tentamos uniformizar tudo e todos, da mesma forma como aconteceu com Kasper do século XIX. Suas dificuldades motoras impediam que ele dissesse o que realmente queria, mas depois de aprender as regras e costumes de sua época, foi capaz de dizer, e mostrar as falhas e erros de seu tempo. E isso resumiria o que eu faria com o Kasper de nosso tempo – eu o ajudaria e se tornar um observador de seu mundo. No entanto, isso não significa que tudo o que está sendo descrito aqui seja o mais correto.

Embora esta pretensão seja também uniformizadora e autoritária, acredito que é muito mais complexo do que simplesmente dizer o que é certo ou o que é errado, dentro de um conjunto de regras lobotomizadas. Isso nada mais é do que dar a chance de se deixar escolher em que mundo se quer viver, porque talvez Kasper Hauser não escolhesse este mundo; nosso mundo, nosso modo de vida. Talvez nosso “uniforme” não servisse para ele, mas é difícil saber. Ele teria de ser seu próprio alfaiate e fazer seus ajustes, arrumando sua costura com as próprias mãos.

Assim, encerro esta indagação dizendo que nem eu mesmo gosto de vestir este uniforme. Contudo, não vestí-lo me tornaria invisível neste mundo no qual já ingressei, e no qual já fui ensinado e normatizado. Na verdade todos nós somos como Kasper. Algum dia, recebemos o uniforme de nosso tempo e nem sempre ele serve porque é fabricado em série, e vem em tamanho único. Para aqueles que decidem não usá-lo, resta a invisibilidade e, consequentemente, reside aí a justificativa para a segregação de nossa matrix perfeita e “harmoniosa”.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Blog do Madruga: Alguma Coisa Sobre Ser Torcedor

Blog do Madruga: Alguma Coisa Sobre Ser Torcedor: Umas das coisas que sempre me chamou atenção é a paixão de algumas pessoas pelo futebol. Há muitas coisas que se possa pensar, no entanto, u...

Alguma Coisa Sobre Ser Torcedor

Umas das coisas que sempre me chamou atenção é a paixão de algumas pessoas pelo futebol. Há muitas coisas que se possa pensar, no entanto, uma dessas coisas que me ocorreu, nestes fluídos de pensamentos, tentarei expor daqui em diante, com base na experiência adquirida em idas ao estádio de futebol, juntamente com toda a estranheza que a atitude de torcer, de certa forma, ainda me causa. Não só a mim, como também, em outros que acham que futebol é o “ópio do povo” etc. Há manifestações interessantes nos muros da cidade de Porto Alegre as quais exclamam “enquanto te exploram tu grita gol”. Há ainda uma porção de outras coisas do gênero que poderiam ser aqui enumeradas, contudo, não é este meu propósito.
Gostaria de chamar atenção para o fato de que ir a um estádio de futebol é, antes de tudo, uma atividade social; por mais que muitos não concordem. Existe, no momento da parida, a experimentação de um certo tipo de identidade; um fluxo coletivo que toma conta de todos e que é externado na hora em que sai o gol; não do time adversário obviamente. Neste momento, os pais de família, os estudantes, as mães, as namoradas, os maridos, as esposas, os filhos, os trabalhadores, todos estes, deixam de existir. Todas estas diferentes posições de sujeito, as quais ocupamos, desaparecem e, então, ingressamos na grande massa; no sujeito coletivo e passamos a assumir o papel de torcedor.
Em um primeiro momento – e nisso que acreditei até algum tempo –, temos a impressão de que fazemos o movimento de nos deslocar para a posição de torcedor, como se quiséssemos fazer parte de algo maior, para além do nosso “insignificante” eu. Ao fazer parte de uma coletividade elaboramos, para nós mesmos, uma autodefesa contra as “agressões” da vida cotidiana, buscamos conforto, onde ele possa existir, nesta relação, nos trazendo, ainda, o beneficio maior que seria poder dizer aos quatro ventos” eu faço parte de...” Não percebia que tudo isso era um equívoco.
Pessoas mudam de partido político, mudam de religião, trocam de companheiros ao longo da vida, mudam o estilo musical; enfim, mudam seus hábitos, mas não mudam de time de futebol. Ser torcedor, neste sentido, constitui uma espécie de “radical” de nossa identidade, ou seja, aquilo que não muda. Ser torcedor, deste ou daquele time, faz parte da maneira pela qual nós nos colocamos no mundo e que, portanto, nos define. No Rio Grande do Sul, por exemplo, há no futebol, em nível de torcidas majoritárias, a polarização entre gremistas e colorados. A definição que se busca, em ambos os lados, caracteriza-se pela expressão “eu sou” (isto ou aquilo).
A expressão usada e a forma como se organiza a pronúncia da frase diz muito, embora, não pareça. Nenhum torcedor se define dizendo “eu faço parte da torcida X ou Y.” Ao responder a pergunta ele dirá “eu sou X ou Y.” Logo, o que se pode pensar é que nós nos projetamos sobre as coisas as quais julgamos ser de nossa predileção e ela passa a integrar parte do nosso eu. Assim, nos tornamos maiores do que realmente somos. Para muitas outras coisas, usamos pronomes possessivos para buscar referência como, por exemplo, meu carro, minha casa, meu trabalho, minha família, meus amigos e assim por diante.
Estendemos-nos sobre outras coisas e as tomamos como parte de nós, de modo análogo, como se fosse um órgão vital. Esta ampliação de nosso eu engloba, também, o time pelo qual torcemos. E nesta relação, o fenômeno é ao contrário do que eu acreditava. Não somos nós que fazemos parte do time ou do conjunto de torcedores X ou Y, e, sim, o time e o conjunto de torcedores que fazem parte de nós como constituintes do que somos; material e simbolicamente.
Por esta razão, ouvimos falar de torcedores que protestam quando o time não vai bem; briga entre torcedores etc. Tudo isso porque é esta parte de nós que quando está sofrendo algum tipo de ameaça precisa, rapidamente, ser socorrida. As manifestações, neste sentido, muitas vezes, são tomadas como ato puramente irracional, contudo, acredito que são atitudes pensadas, calculadas, medidas e pesadas que atuam no sentido de resgatar a honra, como se alguém tivesse colocado em risco nossa integridade física.
O ato de torcer por um time de futebol posiciona uma parte de nós no mundo e, portanto, dá sentido a nossas, ou ao menos para a vida de alguns. Embora que aqui pareça haver proselitismo em favor do futebol, na verdade, se alguém pensou isso, não é esse o propósito deste escrito. Quando nos propomos a entender certos fenômenos é necessário, antes de tudo, abandonar alguns modelos, preconceitos, ideias a priori e assim por diante. Evidentemente, futebol é um assunto complexo e inesgotável, no entanto, intentar perceber algumas de suas características às vezes se faz preciso.
É uma atividade social, antropológica e, também, histórica. Também é cultura popular e um negócio milionário. Uma verdadeira indústria de jogadores, treinadores, uniformes, marketing e tudo o quanto possa ser convertido em renda para os times. Enfim, tudo isso faz parte de nós e, por isso, é tão difícil emitir opiniões não passionais, tanto em favor quanto contra o futebol.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Bem Vindos a Selva: mitologia e história

Bem Vindo à Selva
            Em 1987, a banda estadunidense Guns in Roses, lançou o álbum Appetite for Destruction, que viria a ser um dos mais vendidos da história do rock. A primeira faixa, intitulada Welcome to the Jungle (tradução: bem vinda à selva), é uma narrativa que se refere à cidade, metaforicamente tratada como selva. A descrição é temerosa, sombria e, por vezes, de repúdio a ela. Trata da história de uma mulher, anônima e de lugar indefinido, recém-chegada a uma grande cidade. O narrador da história é o seu guia. Ele a apresenta a selva; a selva de pedra. Lugar de perdições e prazeres mundanos, mas que, no entanto, só serão adquiridos se comprados; eis a dificuldade.
            Para conseguir dinheiro, todavia, é preciso ir a “caça”. A caça, por sua vez, sugere a interação da mulher recém-chegada com a selva; um mundo inculto, insalubre, desconhecido e cheio de armadilhas. A selva, cenário desta narrativa, figura como lugar em que a mulher personagem passa a ser desafiada. A relação cidade-selva se dá neste sentido; local que desafia as habilidades humanas e que exige, nesta interação, o domínio humano sobre a selva. Contudo, a analogia feita pela narrativa expressa certo paradoxo. De um lado a selva com seus adereços primitivos e de outro a cidade. Mas o que seria a cidade?
            Poderíamos nos deter em uma análise etimológica destes dois termos, contudo, aqui foi feita a opção por uma abordagem sociocultural em torno destes conceitos. A palavra cidade vem do latim civita, que significa reunião de cidadãos. Enquanto que selva, do latim silva, significa mato. Ao longo da história da humanidade, as cidades foram percebidas como a materialização da evolução humana; símbolo da civilização. Contudo, nem todos os povos edificaram cidades e, a estes, cunhou-se expressões como bárbaros, silvícolas, povos atrasados, incultos; índios.
            Estes, por sua vez, viviam aos milhões pelos territórios que viriam a serem chamados de América pelos europeus. Estas expressões confundem-se. Até tornaram-se sinônimos para se referir as populações que viveram fora da Confederação Astéca ou do grande Império Ínca, por exemplo. No Brasil, espaço ocupado por inúmeras parcialidades indígenas do tronco linguístico tupi-guarani até o século XVI, por exemplo, não possuíam grandes centros urbanos e, por esta razão, muitos estudiosos interpretaram como atraso em comparação aos íncas maias e astécas. A partir deste quadro, podemos iniciar um breve exercício teórico. Seriam estas populações realmente atrasadas? O que realmente nos difere deles?
            No caso específico das populações guaranis, que passaram por inúmeros sobressaltos após o contato com os europeus – encomienda, compartimiento, cristianização, extermínio e perda de territórios –, cada fenômeno descrito rendeu uma vasta literatura, principalmente durante o período missional jesuítico (séculos XVII-XVIII). As pesquisas etnográficas mostram que os padres jesuítas viam os guaranis como bárbaros não civilizados. Não reconheciam neles capacidade alguma de organização social, nem mesmo a possibilidade de possuírem um sistema de crenças bem definidos. Afinal, não possuíam imagens, ídolos ou livros sagrados; logo, não possuíam religião.
            No entanto, os antropólogos questionaram-se a este respeito em virtude destes mesmos jesuítas, ao mesmo tempo, terem admitido ter sido muito difícil ministrar a catequese entre os guaranis. Ora, se não havia uma religião definida, porque foi difícil a catequese? Hoje a antropologia reconhece, por meio de estudos etnológicos, que a própria organização social dos guaranis compõe uma religião. Há entre os povos guaranis a reiteração, em diferentes pontos do Brasil, do chamado mito da terra sem máles. Os antropólogos já o identificaram também nos textos jesuíticos e entre os guaranis de hoje. Para os guaranis, de um modo geral, a terra sem máles é o paraíso. Lugar onde não há dor, nem sofrimento. Onde os alimentos crescem sem ter de plantá-los e, a caça, vem morta aos pés dos caçadores.
            Para os guaranis, considerados por muitos como povo errante, a terra sem máles, no entanto, é um lugar físico e que fica a leste, sempre em direção ao mar. Diz o mito guarani que cansado da maldade dos homens, Nhanderú, deus supremo dos guaranis, resolveu destruir a terra em um grande fogo. O ser supremo avisou Guiraypoti, o grande pajé, e ordenou que ele dançasse e fizesse rituais por toda uma noite. Ao final, Nhanderú retirou um dos esteios da terra e, então, o fogo alastrou-se. Guiraypoti, com isso, juntou sua família e partiu para leste, em direção ao mar. Depois de ter lá chegado, construiu uma casa e continuou com as danças rituais. Mas o fogo chegou e Guiraypoti teve que subir no telhado da casa com sua família.
            A água do mar começou a subir para apagar o fogo da terra e o grande pajé evocou o canto sagrado dos guaranis. Foi então que a casa começou a subir em direção aos céus. Para os guaranis, o lugar para onde foi Guiraypoti e sua família é a terra sem máles. É notório que a história dos guaranis é marcada por grandes migrações rumo ao leste. A busca pela terra sem máles, ainda que não tenha fornecido provas empíricas aos historiadores, para os guaranis é uma jornada rumo à elevação do espírito; uma busca pela eternidade. Para eles, os guaranis de hoje, os padres jesuítas não eram juruás (homens brancos), eram guaranis, grandes pajés (Karaís), que alcançaram a terra sem máles, portanto, foram homens que alcançaram a eternidade.
            A prova disso, para eles, são as ruínas das antigas missões. As pedras, para os guaranis, são os ossos da Terra, símbolos da eternidade. Eles entendem que os Karaís ou Nhanderú Mirins (padres jesuítas) deixaram as ruínas para indicar o caminho da terra sem máles. Contudo, mesmo que na escatologia guarani, como em muitas outras, encontre-se referencias a um lugar transcendental, o mundo físico é interpretado de modo sagrado. A própria origem de Nhanderú conta com elementos da natureza, como podemos perceber pelo trecho que segue:

Nosso pai, o último nosso pai, o primeiro, fez com que seu próprio corpo surgisse da noite originária [...] Divino espelho do saber das coisas [...] No cimo da cabeça divina as flores, entre as plumas que o coroam, são as gotas de orvalho. Entre as flores, entre as plumas da coroa divina o pássaro originário, Maino, o colibri, esvoaça, adeja. Nosso pai primeiro, seu corpo divino ele desdobra em seu próprio desdobramento, no coração do vento originário (A fala sagrada dos guaranis; apud, CLASTRES, 1990, p. 24).
        
            Até aqui, já poderíamos traçar algumas considerações em torno de nosso exercício. Para os guaranis do passado e para os de hoje, a natureza é sagrada por que ela é parte do ser supremo. Ao contrário, para nós a natureza não representa nenhum aspecto neste sentido. Assim chegamos a uma grande diferença entre nós, humanos herdeiros de séculos de cultura destilada aos moldes judaico-cristãos, construtores de grandes cidades e criadores de grandes maravilhas tecnológicas e eles – povos atrasados, incultos e incapazes de elaborar coisas desse tipo; enfim, incivilizados. Poderíamos até parar por aqui. Afinal, não seria nada difícil encontrar diferenças entre índios e não índios. Contudo, nosso exercício continua.
            Para isso, é preciso reportar-se aos estudos do historiador Keith Thomas (1983) acerca das relações do homem moderno com a natureza; o mundo natural. Thomas investigou nosso mito de origem expresso no livro de Gênesis. Segundo ele, ao contrário do que muitos pensam, as preocupações da humanidade em torno da natureza são mais recentes do que se imagina. Vamos ao mito. Em Gênesis encontra-se a narrativa que conta a origem do homem. Os primeiros humanos, Adão e Eva – como todos sabem –, viviam no paraíso e foram expulsos de lá, logo após terem comido o fruto proibido.
            Isso significou para o homem a quebra do contrato com Deus que estipulava a Adão e Eva o seguimento incondicional de seus desígnios. Como punição, Deus enviou-os a Terra onde teriam que prover a sua sobrevivência. É neste momento que a jornada humana sobre a Terra se inicia. Uma história de dominação sobre a natureza legitimada pelas sagradas escrituras do Antigo Testamento. Como diz em Gênesis:

Temam e tremam em vossa presença todos os animais da terra, todas as aves do céu e tudo o que tem vida e movimento na terra.  Em vossas mãos pus todos os peixes do mar. Sustentai-vos de tudo que tem vida e movimento (Gênesis IX, 2-3; apud: Thomas, 2010, p. 23).

            Seguindo o raciocínio de Thomas, chegaremos à conclusão de que o mundo natural assume um papel utilitarista para a humanidade. A natureza e todos os seus recursos foram designadas por Deus para o sustento dos homens e, para isso, no entanto, era necessário interagir com o mundo natural. Era preciso transformar o inculto em culto: desbravar as selvas e transformá-las em áreas cultiváveis; criar animais para alimentar-se e assim por diante. Ao dominar a natureza, ao mesmo tempo, o homem judaico-cristão excluiu-se do mundo natural, vindo, então, a criar o seu próprio mundo em oposição à natureza, ou seja, as cidades. Genericamente, nós ocidentais não nos reconhecemos como partes integrantes da natureza e nosso mito de origem representa muito bem nosso papel no meio ambiente.
            A relação cidade-selva apresentada na música da banda Guns in Roses, por exemplo, segue esta premissa. Espera-se que a cidade seja o que foi feita para ser; o artifício humano e seu isolamento do mundo natural, mesmo que ilusório. Por outro lado, na letra da música, encontra-se a analogia da cidade como palco de comportamentos primitivos, nocivos e distantes da civilização, expressos nos “devaneios” descritos. Para o antropólogo Carlos Rodrigues Brandão (1994) os homens ocidentais, neste isolamento, colocaram a natureza em uma posição hierarquizada em relação a eles e, tudo o que existir no mundo natural sem ter passado pela transformação da técnica humana, é colocado no plano inferior do primitismo.
            Para os guaranis, no entanto, o mundo natural, parte integrante do ser supremo Nhanderú, figura como sujeito e não coisa. A água, as plantas, os animais e os homens são parte de um mesmo plano. Não há hierarquias nesta relação. Os deuses do panteão guarani vivem nas florestas, nas pedras, nos rios, nas noites, nas tempestades e no orvalho das manhãs. O mundo natural constitui uma parte integrante de uma complexa rede de trocas entre homens e natureza. Tudo isso é formado entre a socialização dos significados que o mundo natural adquire para os guaranis. Os mitos, os rituais e tudo que pode caracterizar uma etnologia guarani, nada mais são do que as formas pelas quais eles se relacionam com a natureza.
            Aqui, chegamos a mais uma parte de nosso exercício; a comparação entre duas formas bem distintas de relação com a natureza. Brandão, em estudo sobre os discursos e reivindicações dos povos indígenas na ONU, na década de 1980, fez interessantes distinções a respeito do modo indígena de pensar o mundo e o modo “branco” ocidental europeu (do qual somos herdeiros). Para Brandão existem sistemas de pensamento bem distintos. Eles se organizam a partir da relação dos homens com o meio ambiente, ou seja, o mundo natural. Para Brandão, os indígenas em relação oposta aos “brancos” ocidentais, percebem o mundo natural em uma permanente relação de trocas, caracterizando o que ele chamou de dívida e dádiva.
            A terra para os indígenas, por exemplo, fornece os alimentos e os meios materiais básicos para a sobrevivência. Nela enterram-se os mortos, para que um dia retornem a vida, completando um ciclo de vida e morte. Nesta relação de trocas, os homens fazem parte do mundo natural e, as diferentes formas de se relacionar com ele, caracteriza o que chamamos de cultura. Essas relações com o mundo natural são codificadas em símbolos, como danças, mitos, rituais, desenhos e, sobretudo, nas relações entre os homens. Tudo faz parte do mundo em uma relação entre iguais, por haver troca constante entre eles.
            A natureza figura como sujeito, diferentemente dos “brancos” ocidentais, que pertencendo a outro sistema de pensamento, reificam o mundo natural, não havendo, portanto, relação de trocas entre homem e natureza. Os “brancos” não se vêem como parte do mundo natural e, por isso, fabricam o seu próprio mundo paralelo e artificial, materializado nas cidades; as selvas em pedra. A natureza e seus recursos, neste sentido, tornam-se passíveis de serem explorados indiscriminadamente. O sistema de pensamento “branco” ocidental, portanto, estabelece uma funcionalidade as “coisas” do mundo natural, transformando-as em seus utensílios, considerados na perspectiva de acumulação, sendo então distribuídos desigualmente. 
            Brandão, ainda diz que, os “brancos”, por tratarem a natureza de forma hierarquizada, ou seja, submetida aos propósitos humanos, acabam projetando esta relação também às interações sociais, tornando, assim, “natural” um homem ser superior frente outro. Devido a estas diferenças, as sociedades ocidentais, se organizam de maneira desigual por entenderem que tudo no mundo natural é passível de conquista e dominação pela técnica; até mesmo outros homens. Aqui, podemos nos lembrar do extermínio das populações indígenas da América e dos escravos africanos. As sociedades indígenas, contudo, por estabelecerem uma relação de trocas (dívidas-dádivas), entendem que a natureza possui grau de parentesco e, por isso, não pode ser conquistada, dominada ou comercializada.
            Enfim, o que se percebe neste exercício são as diferentes formas de cultura e alguns traços gerais que as caracterizam e que se tornam para um pesquisador das sociedades modelos explicativos plausíveis. O estudo do mito parece servir como um bom laboratório de observação dos modos pelos quais se organizam uma determinada coletividade. Seja das selvas de árvores, seja das selvas em pedra. O mito é parte da cultura de cada povo, que por sua vez, é a forma pela qual os homens representam o tipo de relação que eles estabelecem com o mundo natural.
           

sábado, 2 de abril de 2011

Agradeço aos amigos e, também, aos demais que frequentemente acessam este blog, ainda em fase experimental. Tenho tido pouco tempo para escrever, mas sempre que possível tentarei dar certa regularidade aos escritos. Escrever sem compromissos é uma atividade paradoxalmente cheia de responsabilidades. No caso dos contos presentes neste blog, em especial a série Devaneio Urbano, representam certos aspectos do que pensa seu produtor a respeito da sociedade em que vive; eis a responsabilidade. Desde já, peço desculpas por qualquer equívo, transtorno ou qualquer tipo de desconforto que a leitura destes contos possa produzir.

Muito obrigado a todos, e continuem acessando!!