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sábado, 26 de fevereiro de 2011

Memórias de Iñaduvy (parte 3)

 
Ao Sr. General Luís Augusto Sepúlveda Martins de Brito Montinhos de Góis Mascarenhas dos Muitos Alcântaras de Brás e Silva
Comdte. Geral de Todas as Fronteiras Que Houver entre o Ibicuí e o Arapeí e Quantas Mais se Puder ir enfiando os Castelhanos Para o Sul


            Fico feliz de ter sido do agrado do Senhor General a comitiva feita ao Senhor Conde de Vera Cruz pela Fronteira castilhana. Perdoa-me V. Ex. por não ter avisado antes pelo posto recebido das aldeias de Rio Pardo e Cachoeira. Recebi no mês de julho próximo passado deste mesmo ano, do Senhor Comandante de Missões Manoel das Chagas Santos o posto assumido de Capitão Comandante das aldeias do Rio Pardo e Cachoeira. Por ter recebido tal graça devo me desempenhar o cargo com muito gosto e zelo por não ter ninguém que conheça tão bem os assuntos dos índios nestas freguesias.
              Alem de ter o Comando da aldeia de Santa Maria agora conto também com mais estes Povos que já se mostraram favoráveis a nossa causa. Recebi noticias deste Frances que anda a cruzar nossa Província. Dizem os escravos do Alferes André Ribeiro de Cordova que o supradito lembra muito uma Dona por seus modos requintados e delicados. Dizem também que este Senhor pode ser um bombeiro castilhano disfarçado entre nosso povo. Mesmo com tantos boatos o Conde de Vera Cruz reuniu se com este Senhor para tratar sobre os assuntos da Corte e dos luxos da Europa.
                Falo isto por ter ido ao batizado da inocente mais parece um anjinho filha do Senhor Alferes André Ribeiro de Cordova que na ocasião o Senhor Capitão Comandante deste Distrito da Boca do Monte o Sr. José Machado Fagundes de Bittencourt e sua mulher foram os padrinhos em grande festejo em que houve churrasco gordo e aguardente feita nas missões a qual alguns índios de minha Nação guarani dizem ser milagrosa. O supradito Alferes é um bom padrinho para os guaranis da aldeia. Sua boa relação com o Capitão Comandante garante a ele regimentar muitos guerreiros guaranis os quais é de sua inteira estima.
                Há poucos dias houve uma grande confusão nesta aldeia de Santa Maria que interveio a favor dos índios o Capitão Comandante e o Alferes juntando se a estes o Coronel Manuel Carneiro da Silva e Fontoura. O Juiz Ordinário foi impedido de remeter Oficio ao Juiz da Villa da Cachoeira relatando sobre este entrevero entre alguns índios nossos e os soldados de um Capitão do Mato. Eu nada pude fazer sobre este ocorrido por estar-me em diligencia a Fronteira e agora como Capitão destes povos devo ter a sabedoria de bem conduzir tais acontecimentos mesmo eu não contando com a inteligência de Vossa augusta pessoa.
                Agora devo contar com a graça de Nosso Senhor Jesus Christo para por ordem nesta aldeia fazendo diligencia aos olhos das testemunhas recorrendo às leis escritas por nosso Sr. Augusto Príncipe Regente e Perpetuo do Reino Unido de Portugal Brasil e Algarves para restaurar a paz na Capela de Santa Maria.

Deus Guarde Vossa Ex.

Cptam. Cdte. do Distrito de Santa Maria da Boca do Monte.

Memórias de Iñaduvy (parte 2)

Ao Senhor General das Sepulvedas e de todos os Alcântaras. Senhor Perpétuo; Ilustríssimo de todos os Povos, Vilas, Capelas, Freguesias e demais lugares em que haver a oeste da Vila do Rio Pardo, até Corrientes e do Povo de São Nicolau até Yapeyu.

            Sr. P. das Fronteiras do oeste desta Capitania venho a informar V.S. que a escolta ao Conde de Vera Cruz (português Matheus) foi muito bem sucedida. Como V. S. havia ordenado, o Tenente Coronel Jonas Vargas veio diretamente da Corte para ajudar na expedição. Sendo o Senhor Tenente Coronel, homem de sua inteira confiança, prontamente atendeu ao seu chamado, vindo diretamente a esta Capela Distrito de Santa Maria, partindo com o Capitão de Ordenanças, Castilhano Liandro, e demais soldados para a Vila do Rio Pardo, onde estava o Conde de Vera Cruz com sua comitiva vinda de Porto Alegre.
            Juntei minha tropa aos demais expedicionários, rumo ao Povo de São Borja, onde sou Capitão Comandante e Corregedor. Lá também temos a estância dos Fontella, valorosos povoadores de nossos domínios, e pais de nosso Capitão de Ordenanças, onde podemos contar como posto avançado nesta Fronteira. Chegando lá, foi preciso afugentar alguns castilhanos que andavam a roubar o gado de nossa gente. Alguns índios que andam ainda fora das graças de Nosso Senhor Jesus, ajudavam estes malditos Castilhanos. Corremos atrás deles até Corrientes. No retorno, paramos na poperia do guarani conhecido na região como Ignacio do Uruguai. Este índio serve nos de mantimentos para nossas expedições e também monopoliza os negócios na praça comercial do Rio Uruguai, com seus alfajores e bons vinhos, tão finos quanto aqueles que vem de Portugal.
            O Conde de Vera Cruz, disse não confiar nos guaranis destes Povos, mas disse a ele que se quiser fixar sua sesmaria na Capela do Alegrete, deverá bem tratar esta gente, ou então será rechaçado destas bandas. O supradito, não conhece bem os Povos da Fronteira, tampouco sua farta fauna e flora. Por ser um fidalgo, formado nas letras e na filosofia, desconhece a vida no mundo natural. O Conde, assustava se de muitas criaturas de nossa fauna. No caminho até o passo de Uruguaiana, o supradito confundiu uma capivara, com as ovelhas, as quais, está acostumado a ver em Portugal. Ele demorou a ser convencido que aquilo que acabara de ver era uma capivara.
            Logo em seguida, confundiu um quero-quero com uma perdiz. O Capitão de Ordenanças ficou muito impaciente por isso e foi logo acomodado pelos soldados do Tenente Coronel. O Conde ficou impressionado com o grande número de bugres que existem na fronteira. Ele diz que o Brasil não pode ser povoado por esta gente e, por este motivo, acho que ele deverá se apresentar a V. E. para falar lhe. Seu interesse é trazer para a Fronteira gente branca da Europa para povoar e trabalhar nestas incultas terras. Com todo o respeito e graça que estimo por V. E. digo que o Conde está errado em pensar tais coisas porque os europeus não conhecem as artes da guerra e, portanto, serão impedidos de defender esta Fronteira.
            Os camponeses da Europa serão duramente castigados pelos traiçoeiros castilhanos, como muito bem lembrou nosso Capitão de Ordenanças. O próprio tenente Coronel desaprovou a ideia do Conde, dizendo lhe que não conhece a Fronteira em coisa alguma. Amanhecendo o dia levamos o Conde até o Vigário. O supradito confesso se e depois conversaram sobre a construção de uma Capela e de um oratório privado. Tratou também de batizar seus escravos e realizar alguns casamentos entre eles. Sua escrava de nome Felizarda Moçambique, V. E. esta de mancebo com o escravo do Conde que chamam de Manoel Piqueno. Este por sinal é bom campeiro e nos acompanhou durante toda a expedição.
            Notei um comportamento estranho no Capitão de Ordenanças. Por ser o supradito, natural do Povo de São Borja, e conhecer todas as artes de enganar o inimigo e até a nós mesmos, quanto mais se aproximava do Uruguai, mais aparecia lhe ideias pervertidas e da pior espécie; heresias e profanações, mas, entretanto, logo em seguida percebi que se tratava de um Castilhano. Por andar entre nós e nos servir a muito tempo, tinha esquecido de sua conduta desregrada e desgraça. Sua alma foi salva pelas graças de nossa religião e pelas mãos de V. E. dando lhe trabalho em vossas terras.
            O Tenente Coronel Jonas Vargas, passou a viajem inteira evocando o nome de uma entidade desconhecida, a qual, dizia ser Bourdieu. Não sei do que se trata, por isso fui impedido de o reprender. Por alguns momentos o supradito desconheceu minha autoridade nesta Fronteira, fato que foi corrigido depois que disse que era o Capitão Comandante das aldeias do Rio Pardo, Cachoeira e Santa Maria, e Senhor Corregedor do Povo de São Borja. Perguntei a ele em quantas batalhas esteve e prontamente me responde que matou muitos castilhanos e muitos índios infiéis que acompanham Artigas.
            O Conde de Vera Cruz impressionou se com as histórias do Tenente Coronel, dizendo que jamais participou de batalha alguma. O Capitão de Ordenanças largou se a rir por este motivo dizendo em voz alta que o Conde era um fidalguinho criado em castelo, mimadinho pelas âmas de leite, e que não conhecia nada das coisas deste mundo. Logo tive que o reprende lo puxando de meu facão. Disse a ele para não zombar mais do Conde, o qual era seu senhor na expedição. Ao retornar da Fronteira garantimos todos os soldados com vida e inteiros apesar de ter enfrentado batalhas duras no Rio Uruguai.
            Garantimos ao Conde sucesso em sua empresa a Fronteira. Mesmo o supradito não saber a diferença entre uma capivara e uma ovelha, digo a V. E. que o Sr. Conde de Vera Cruz será um valoroso povoador de nossa Fronteira. O Tenente-Coronel também foi bem sucedido garantindo bons cavalos em troca de alguns escravos de suas charqueadas na Vila de Pelotas. Assim, termino este ofício dizendo ao Sr. General. que cumpri mais uma missão nesta fronteira e espero por outras que farei com agraça de Nosso Senhor Jesus Cristo.

            Deus guarde a Vossa Excelência.

Capela de Santa Maria da Boca do Monte 18 de fevereiro de 1817.

        Capitão Comandante do Distrito de Santa Maria,  Pedro Inãduvy.                       

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Memórias de Iñaduvy


ILMO. EXL. Senhor General Sepúlveda Alcântara.

Ofício em resultado aos ocorridos na Vila do Porto Alegre.

            Era um dia cinzento. As tropas já se encontravam exaustas da marcha iniciada na Capela de Santa Maria rumo a Vila de Porto Alegre. Ao chegar às imediações da referida Vila, tivemos a chegada dificultada pela cheia do rio Jacuí, alagado pela chuva torrencial da última madrugada. Perdemos alguns cavalos durante a difícil travessia. Sorte que podemos resgatar boa parte de nossos suprimentos antes que a grande correnteza lhes desse outro destino. Depois de atravessar o caudaloso rio Jacuí, paramos para conferência de tudo quanto levávamos. De onde paramos, podíamos ver a grande planície onde se localiza Porto Alegre. Ao nos aproximar, podia se ver mais claramente a quantidade de inimigos que transitavam como sentinelas.
            Chegamos ao início do dia e tratamos de nos posicionar. Misturávamos entre a espessa relva que nos servia de apoio para confundir o inimigo. Chegávamos cada vez mais perto da Vila e mais claramente via-se o número grande de soldados castelhanos. Não teríamos a mínima chance, pois eram em grande número, muito maior que os nossos. Mesmo com toda a coragem, mesmo lutando pelo nosso Império e pela Augusta Majestade do Brasil, seria suicídio atacar aqueles castelhanos de peito aberto. Estava eu com 20 valorosos guaranis da Aldeia de Santa Maria, junto com o destacamento do Castilhano Capitão do Mato Liandro, de mais 12 negros escravos, que receberam como promessa a graça da liberdade e outros que queriam apenas os espólios junto aos inimigos que derrubassem. O Capitão de Ordenanças da Vila da Caçapava, o mulato André, também trazia consigo mais 18 milicianos, distribuídos em pardos alforriados e outros homens brancos que vieram da Vila da Sorocaba tentando melhor sorte nesta fronteira.
            Discuti com os outros sobre como entraríamos na Vila. Descartamos o assalto, não haveria a menor chance. Os castelhanos distribuíram várias peças pelas vias de acesso a Vila. Também colocaram sentinelas por toda a parte. Também não poderíamos ficar ali até anoitecer, pois seriamos descobertos e trucidados pelos malditos castelhanos. Pensei em enviar um mensageiro a Rio Pardo solicitando reforço de praças, no entanto, seria outra ideia inviável, advertiu-me o Castelhano Liandro. Disse em voz alta que tinha a solução para nossa investida. Ao ouvir sobre a ideia de enviar um mensageiro, disse que não poderíamos perder aquela posição. Foi então que teve uma ideia, um tanto audaz, e que dependeria de muita sorte; um verdadeiro golpe do destino. Liandro, o castelhano, assim conhecido entre os milicianos, era natural da extinta missão do pueblo de San Francisco de Borja, antigo domínio espanhol, tomado por nossa gente valorosa, aos comandos de Borges do Canto, em 1801.
            Lá, Liandro aprendeu as letras da língua espanhola, as lides do campo, a doma de cavalos, as artimanhas do contrabando e sua especialidade que é capturar escravos fujões. Neste negócio, o castelhano lucrou muito. Em muitas vezes, ele capturava o negro e o revendia para os vecinos da Banda Oriental e para os castelhanos de Corrientes, tendo já recebido dos senhores brasileiros muitos patacões para realizar a busca. Outras vezes, ele deixava o escravo atravessar a fronteira cobrando do negro algum valor, dizendo depois que nunca tinha o visto. Não foi diferente quando se dirigiu a nós. Entre um e outro gole de aguardente, disse que tinha um plano e digo que nenhum outro general, ensinado nas artes da guerra, em qualquer lugar de qualquer corte, seria capaz de tê-lo.
            Disse ele que escreveria de seu próprio punho um ofício, fazendo-se passar por um general castelhano, de nome Escobar, conhecido e temido na Fronteira de Missões. Remeteria ofício ordenando o destacamento castelhano a abandonar a Vila de Porto Alegre, obrigando-os a apresentarem-se as margens do rio Uruguai para combater forças brasileiras. Ao redigir o ofício na língua espanhola, Liandro dobrava-se em gargalhadas, tonadas de forma diabólica. O Capitão André olhava com receio, mexendo os ombros; na certa pensava que o plano não daria certo. Depois de ter terminado de escrever, rubricou o papel e o timbrou com um anel que arrancou de um oficial correntino. Chamei um guarani, bom cavaleiro, de nome Felipe Santiago para ir até a Vila entregar o ofício aos castelhanos. Foi advertido por Liandro que, ao chegar a Vila, deveria falar-lhes em guarani para que, então, fosse levado até o oficial chefe, onde seria recebido por este, junto de um interprete guarani.
            Felipe Santiago, guarani bravo do qual tenho a honra de comandar, partiu em disparada em seu matungo. Ficamos a observar entre a relva enquanto ele partia até a entrada da Vila. Foram instantes de grande pavor. Todos apreensivos, ficavam de cochichos. Na certa ninguém esperava o que poderia acontecer. No meio da guerra, algumas decisões são solitárias, mas se vier a derrota em função delas, a desgraça é de todos. O guarani Felipe conseguiu chegar às sentinelas. De longe, podíamos ver que havia conseguido passar por eles e, naquele momento, o encaminhavam para o oficial, dando alguma esperança para o nosso desesperado plano. Após algum tempo, Felipe Santiago deixou a Vila e vinha em nossa direção. Ele era todo sorrisos; parecia um moleque.
             Dei ordens a ele para relatar o que tinha acontecido no interior da Vila. Perguntei-lhe se tinha estado na presença do oficial chefe. Respondeu-me que sim. Disse que havia conversado com um Marechal de Campo por nome de Manuel Garcia. Perguntei-lhe se havia entregado o ofício. Respondeu-me que sim, e que havia também a resposta do ofício junto ao corpo. Tirou de seu bolso um papel de baixa qualidade em que estava a resposta ao ofício que havíamos remetido. Nele, dizia que as ordens do General Escobar deveriam ser seguidas e que o mais rápido possível estaria com suas tropas às margens do rio Uruguai. No ofício escrito por Liandro havia um pedido expresso aos castelhanos que abandonassem todo o armamento e mulas para a viagem ser mais rápida e que ninguém ficaria na Vila, ela deveria ser abandonada. Prontamente, os castelhanos levantaram acampamento e começaram a debandar.
            Depois de algumas horas fomos até a Vila, sempre vigilantes, para evitar tocaia dos inimigos. Ao chegar lá, não avistávamos nenhuma alma. O castelhano Liandro prendeu um grito dizendo: “arruma o fogo que hoje vai ter fandango”. Não acreditávamos. Seu plano havia funcionado. Trataram logo de matar uma vaca gorda deixada pelos castelhanos. Não só isso, como também muita aguardente, vinho e charque. Ao cair da noite, aproximaram-se do fandango algumas chinas que traziam crianças em suas carretas. Perguntaram-me se poderiam se juntar aos nossos milicianos. Pensei em nossa marcha e, então, permiti que se desse a função. No final de tudo, ficamos com mais de cem cavalos, 30 peças de canhão, duzentos mosquetes; tudo abandonado por cerca de trezentos castelhanos persuadidos por um infeliz miliciano contrabandista. Reconquistamos a Vila sem perder um único homem e sem tirar nenhuma espada da bainha. E quem conta essa história acaba passando por mentiroso. Sorte a minha que eu estava lá e vi todo o ocorrido.
            E foi assim, Excelentíssimo Ilustríssimo General, que em nome de nosso Augusto Príncipe Regente, D. Pedro, conseguimos colocar a Vila do Porto Alegre no mapa de nosso glorioso Império, graças à astúcia do Castelhano Liandro.


                        Deus Guarde a Vossa Excelência.
                                                                                             
                                                                       Capitão-Mor dos Naturais Pedro Iñaduvy.

Capela de Santa Maria da Boca do Monte. 7 de Dezembro de 1822.