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segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O Enigma de Kasper Hauser

No ano 1828, num lugar próximo a Nuremberg, hoje na Alemanha, houve um caso misterioso de um jovem que viveu boa parte de sua vida acorrentado em um Porão. Era alimentado por um homem estranho que o castigava. O nome deste jovem era Kasper Hauser que tinha na clausura do porão e nos grilhões das correntes que o aprisionavam o único mundo que conhecia. Kasper não possuía nenhuma habilidade motora e nenhuma capacidade cognitiva desenvolvida; vivia quase em um estado vegetativo e não possuía nenhum tipo de sociabilidade.

            Certo dia, o homem o qual alimentava o jovem acorrentado, resolveu ensinar-lhe a escrever. As únicas coisas que Kasper aprendeu foi o próprio nome. Depois disso, o homem o libertou levando-o até uma vila próxima a Nuremberg onde o abandonou em uma praça. O fato chamou atenção dos moradores que, de início, acharam que Kasper pertencia à nobreza. Depois de um tempo, dois anos mais ou menos, Kasper havia ampliado seu vocabulário e dominado maior precisão motora. Com ajuda dos habitantes do lugar, aprendeu a fazer tricô, tocar piano e algumas técnicas de jardinagem.

            Esta história é narrada no filme cujo título em português é O Enigma de Kasper Hauser, de 1974, dirigido por Werner Herzog, baseado em uma história real. Para quem não viu o filme, vale a dica, é bom ver. Mas não estou simplesmente propagandeado-o. O que tenho para mostrar aqui é uma atividade que foi desenvolvida em uma das disciplinas do curso de graduação em história, o qual cursei entre os anos de 2005-2010. A atividade me chamou a atenção porque a professora solicitou que cada um de nós escrevesse um texto, tomando a história de Kasper Hauser como base, abordando uma situação semelhante, em que nós alunos, seriamos responsáveis pela socialização de um sujeito nas mesmas condições de Kasper.

            Isso, para mim, suscitou pensar na educação formal e em sua estreita relação com a democracia. Enquanto educadores, o que ensinamos? E para que ensinamos? A partir destas perguntas, foi construído o texto que segue abaixo, entregue a disciplina, e que compartilho neste blog com o propósito de refletir, não apenas no papel do educador, mas também no tempo que forma este educador e nos fragmentos de coisas as quais ele julga necessário ao aprendizado de seus educandos. Vamos ao texto:



Democracia: um uniforme?

Podemos dizer que muitas escolas, não só no Brasil, funcionam como “porões”. Nelas, estão escondidos e, aprisionados, muitos Kasper Hauser que, na tentativa de se incluir, boa parte das vezes, acabam sendo excluídos; principalmente aqueles que contam com poucos recursos materiais e econômicos. O educador, no entanto, revestido da mais pura preocupação (nem todos é verdade) de incluir um aluno à sociedade acaba o uniformizando. Leva-se a ele a “civilização”, como a forma mais avançada da organização humana. Por muitos séculos, antes de nós, muitas sociedades chocaram-se umas contra as outras para, enfim, definirem por meio das armas, qual seria o modelo civilizador mais apropriado.

Poderíamos, aqui, nos reportar aos reinos e impérios da antiguidade, dos egípcios até Alexandre O Grande, dos romanos até os conquistadores europeus de fins da Idade Média. Poderíamos ainda falar dos grandes impérios ameríndios, ou dos Estados expansionistas da Era moderna. Todos estes levavam modelos, carregavam em si “propostas” de organização sendo colocadas e “apresentadas” entre a alteridade e a negociação. Esboçavam um conjunto de regras sociais que diziam aos homens, de uma forma ou de outra, como agir e como pensar, para onde seguir, para onde não ir e, ao longo dos séculos, esta forma de organização, desigual e segregacionista, foi reproduzida quase que de modo inconsciente por nossos antepassados.

A humanidade produziu e, presenciou, uma guerra em escala global durante os anos 1914-1918, em que se disputava qual seria a “fórmula” mais convincente de civilização. Ela, no entanto, paradoxalmente, deu lugar à autofagia humana e, durante o século XX, a obscuridade das ações do homem ganhou outros nomes, como socialismo, capitalismo, neoliberalismo e outros tantos “ismos”; todos estes ditando regras, carregando em si modelos perversos de segregação. A uniformização, aqui, entendida como um conjunto de regras que, apresentam de modo um tanto persuasivo idéia de civilidade, é colocada nas escolas de forma naturalizada. Muitos valores, artifício da criação humana, ao longo dos séculos, como ler e escrever, por exemplo, não são contextualizados e, assim, muitos alunos não percebem sua importância.

Neste sentido, todos estes valores, que nada mais são do que construções sociais – artifícios da genialidade humana – funcionam como o estabelecimento de padrões. Hoje, por exemplo, todos os homens devem saber ler, escrever, trabalhar, consumir e se possível ter filhos. Esta organização é colocada como padrão atual de nosso mundo e, com isso, tentamos “impor” esta construção nas escolas. Mesmo que esta ideia pareça hegemônica e impossível de ser driblada, podemos entender os homens que optaram em viver fora deste padrão (marginais) como os Kasper Hauser do século XXI.

            No entanto, esta opção é condicionada, em maior ou menor grau, pelos “calabouços pedagógicos” que são algumas escolas. Dizemos aos alunos o que eles devem ser – na verdade é o que a sociedade espera deles –, mas não os ouvimos. Esquecemos-nos de perguntar o que eles querem ser. Tampouco levamos em conta suas habilidades que fazem parte de suas identidades e, portanto, diz o que eles são. Conformam o modo pelo qual eles dão sentido ao mundo em que vivem; enfim, são suas representações sociais. Não trabalhamos com as diferenças e, sim, com padronização que representa tudo o que a sociedade espera de uma pessoa. Quando elas não correspondem à uniformização, dizemos que estas pessoas (alunos) são desqualificadas.

            Assim, servem de justificativa para a reprovação e, possivelmente, estes reprovados partam para modos alternativos de vida (criminalidade). Talvez até encontrem algum significado para suas vidas, que foram desprezadas pelos modelos formais de socialização. A Educação, dentro do processo escolar, trata de maneira homogênea, tanto alunos quanto professores, sob pretexto de democracia. O problema que pode ser levantado em torno disso, em minha opinião, é a inclusão em que, ao mesmo tempo, pode ser exclusão.

              Podemos ensinar tudo aquilo o que consideramos essencial e, também, o que os conteúdos programáticos recomendam, mas se não levarmos em conta o que os alunos sabem, e o que querem e, de acordo com suas habilidades, estaremos os uniformizando. Mas a pergunta é: será que temos como fugir disso? Será que devemos criar alternativas? Em relação ao filme Kasper Hauser, protagonista da narrativa cinematográfica, ele aprendeu tudo o que seus mestres acreditavam que seria indispensável para sua vida.

            De maneira análoga, um professor faz o mesmo. A diferença é que cada tempo produz um tipo de homem, e cada homem produz um tipo de conhecimento. Conhecimento que se acumulam e que são destilados às gerações subsequentes. Na antiguidade clássica, grosso modo, estes conhecimentos dividiam-se em saber cultivar o solo e obter destreza nas artes da guerra; na era medieval; temer a deus e cumprir juramento a reis e outros senhores feudais. Já na era moderna, as obrigações giravam em torno do respeito às leis e aos propósitos do Estado, e hoje?

            Dentro deste universo multipolar contemporâneo, encontramos muitas formas de ensinar e de aprender, sendo praticamente impossível apontar uma forma mais errada ou mais correta de se fazer isso. Levando isto em consideração, como se ensinaria hoje uma pessoa nas mesmas condições de Kasper? Poderíamos pensar que seria mais fácil do que no século XIX, ou do que em qualquer outra época. Kasper aprendeu a tocar piano. Era capaz de executar músicas de grandes compositores eruditos como, por exemplo, Beethoven. Naturalmente, tocar piano não é uma atividade indispensável à sobrevivência humana, mas no século XIX, tinha muita importância – mostrava refinamento.

            Um humano só aprende a ser humano, obviamente, com outro humano. Um humano só a prende a não errar vendo outro humano errando. Somos nossos mestres, e aprendizes, nossos salvadores e nossos piores inimigos. Somos nossos matadores e nossas próprias vítimas; nossos mártires e heróis. Considero isso indispensável em qualquer aprendizado e, portanto, isso não faltaria nas lições de um Kasper contemporâneo. Não há como não se frustrar, nem como não se sentir discriminado, porque isso também faz parte do aprendizado.

Inevitavelmente, eu reproduziria os valores e normativas sociais da minha época, com todas as falhas e acertos, mas quem julgaria isso seria ele. Não esperaria que ele se tornasse igual a mim, tampouco menor ou maior, mas que fosse Kasper. Mostraria o possível, os caminhos já trilhados, mas quem os escolheria seria ele próprio. Mesmo que isso possa representar respeito à suas escolhas, não significa que seja o mais correto, porque o que aprendi advém de uma experiência que não é a sua e, nesse complexo envolvimento, além do trocadilho, significa, de certo ponto, autoritarismo.

            No entanto, a experimentação de Kasper, seria diferente da minha, porque somos naturalmente diferentes. Por tal razão, considero problemática a questão da uniformização. Contudo, os limites são necessários, entre eles, e o mais importante, o respeito à vida, não só dos homens, mas por tudo que é vivo. Não se trata de um discurso romântico, clichê de candidatas à miss universo, cujo significado reside no “amor a natureza”, mas de uma questão muito prática e até funcionalista – precisamos dela. Nossa vida neste planeta depende de nossas ações e Kasper teria que aprender isso de uma forma ou de outra.

            Ao reproduzir meus conhecimentos à Kasper estaria lhe entregando conhecimentos de pelo menos cinco mil anos, acumulados, destilados e transformados ao longo das gerações. Conhecimentos que acompanham a humanidade e fazem dela o que ela é e, ainda, ajudará no que ela ainda poderá ser. Mesmo se tratando de uma tosca cidade do extremo sul do Brasil, como Santa Maria (RS), Kasper receberia estes conhecimentos que são comuns a todos, ainda que muitos o desprezem por achar que a história, enquanto ciência, não é importante, e que nada tem a acrescentar em suas vidas.

            E se Kasper Hauser assim fizesse, diria a ele que mesmo não reconhecendo a importância dos conhecimentos históricos, acumulados ao longo dos tempos, diria que a história é a lei geral dos homens, da qual não podemos escapar. Mesmo que ele dissesse que nada tem com isso, diria a ele que sua negligência social estaria contribuindo para deixar as coisas como estão, demonstrando, assim, sua parcela na constituição no todo social. Diria ainda que ele pertence a uma época, e que seria lembrado como alguém que viveu nela, talvez não como o Kasper, quem sabe como alguém anônimo; uma experiência única diluída em uma grande ordem coletiva.

            Kasper teria que aprender muitas coisas por si mesmo. O máximo que eu poderia fazer seria levar as coisas até ele, mas quem diria o que serve e o que não serve seria ele mesmo. Quando uniformizamos o mundo, não damos chance para que se vejam nossas falias que se naturalizaram; cristalizaram, e que nos cegam. Mas se deixarmos que outros as vejam, estaremos contribuindo para que aconteçam mudanças. Kasper poderia ser um senador, deputado, presidente, professor ou um ativista de qualquer movimento, se perceber o que há de errado em seu mundo.

            Mas, também, poderia ser um assalariado, pacato, modal, apático e aparentemente alienado das grandes decisões sociais, contudo, eu diria que nem mesmo isso invalidaria sua existência. Para quem ensina torna-se difícil lidar com as diferenças e, assim, o educador se torna egocêntrico – onipotente. Ele acha que sua visão de mundo é a mais correta, e por tal razão, se tornaria doloroso ver seus aprendizes se tornarem homens explorados por outros homens, assalariados ou ainda exclusos da socialização formal. Mas isso, no entanto, da perspectiva dos aprendizes pode ter outro significado.

            Poderia até existir debates para que houvesse uma mudança de pensamento, mas aí, novamente, se estaria uniformizando. Kasper teria que escolher, entre vários caminhos, um que lhe garantisse uma certeza frente a outras tantas incertezas. Dentro desta complexa trama, eu apresentaria a Kasper os caminhos que eu já percorri, e os resultados obtidos  e nada mais. Mostraria o horizonte, mas quem escolheria a direção seria Kasper. Não esperaria que ele escolhesse qualquer caminho já trilhado, tampouco o forçaria a escolher um inédito. Isso teria que ser pensado por ele mesmo, de acordo com suas frustrações e com tudo que lhe foi possível aprender ao longo da socialização de esperanças e incertezas.

Dentro da conjuntura atual de nosso mundo, ainda que possa significar uma generalização, de certo ponto leviana, não penso que estamos aptos, ainda, em lidar com as diferenças, mesmo que já existam debates imemoráveis a este respeito. Ainda tentamos uniformizar tudo e todos, da mesma forma como aconteceu com Kasper do século XIX. Suas dificuldades motoras impediam que ele dissesse o que realmente queria, mas depois de aprender as regras e costumes de sua época, foi capaz de dizer, e mostrar as falhas e erros de seu tempo. E isso resumiria o que eu faria com o Kasper de nosso tempo – eu o ajudaria e se tornar um observador de seu mundo. No entanto, isso não significa que tudo o que está sendo descrito aqui seja o mais correto.

Embora esta pretensão seja também uniformizadora e autoritária, acredito que é muito mais complexo do que simplesmente dizer o que é certo ou o que é errado, dentro de um conjunto de regras lobotomizadas. Isso nada mais é do que dar a chance de se deixar escolher em que mundo se quer viver, porque talvez Kasper Hauser não escolhesse este mundo; nosso mundo, nosso modo de vida. Talvez nosso “uniforme” não servisse para ele, mas é difícil saber. Ele teria de ser seu próprio alfaiate e fazer seus ajustes, arrumando sua costura com as próprias mãos.

Assim, encerro esta indagação dizendo que nem eu mesmo gosto de vestir este uniforme. Contudo, não vestí-lo me tornaria invisível neste mundo no qual já ingressei, e no qual já fui ensinado e normatizado. Na verdade todos nós somos como Kasper. Algum dia, recebemos o uniforme de nosso tempo e nem sempre ele serve porque é fabricado em série, e vem em tamanho único. Para aqueles que decidem não usá-lo, resta a invisibilidade e, consequentemente, reside aí a justificativa para a segregação de nossa matrix perfeita e “harmoniosa”.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Blog do Madruga: Alguma Coisa Sobre Ser Torcedor

Blog do Madruga: Alguma Coisa Sobre Ser Torcedor: Umas das coisas que sempre me chamou atenção é a paixão de algumas pessoas pelo futebol. Há muitas coisas que se possa pensar, no entanto, u...

Alguma Coisa Sobre Ser Torcedor

Umas das coisas que sempre me chamou atenção é a paixão de algumas pessoas pelo futebol. Há muitas coisas que se possa pensar, no entanto, uma dessas coisas que me ocorreu, nestes fluídos de pensamentos, tentarei expor daqui em diante, com base na experiência adquirida em idas ao estádio de futebol, juntamente com toda a estranheza que a atitude de torcer, de certa forma, ainda me causa. Não só a mim, como também, em outros que acham que futebol é o “ópio do povo” etc. Há manifestações interessantes nos muros da cidade de Porto Alegre as quais exclamam “enquanto te exploram tu grita gol”. Há ainda uma porção de outras coisas do gênero que poderiam ser aqui enumeradas, contudo, não é este meu propósito.
Gostaria de chamar atenção para o fato de que ir a um estádio de futebol é, antes de tudo, uma atividade social; por mais que muitos não concordem. Existe, no momento da parida, a experimentação de um certo tipo de identidade; um fluxo coletivo que toma conta de todos e que é externado na hora em que sai o gol; não do time adversário obviamente. Neste momento, os pais de família, os estudantes, as mães, as namoradas, os maridos, as esposas, os filhos, os trabalhadores, todos estes, deixam de existir. Todas estas diferentes posições de sujeito, as quais ocupamos, desaparecem e, então, ingressamos na grande massa; no sujeito coletivo e passamos a assumir o papel de torcedor.
Em um primeiro momento – e nisso que acreditei até algum tempo –, temos a impressão de que fazemos o movimento de nos deslocar para a posição de torcedor, como se quiséssemos fazer parte de algo maior, para além do nosso “insignificante” eu. Ao fazer parte de uma coletividade elaboramos, para nós mesmos, uma autodefesa contra as “agressões” da vida cotidiana, buscamos conforto, onde ele possa existir, nesta relação, nos trazendo, ainda, o beneficio maior que seria poder dizer aos quatro ventos” eu faço parte de...” Não percebia que tudo isso era um equívoco.
Pessoas mudam de partido político, mudam de religião, trocam de companheiros ao longo da vida, mudam o estilo musical; enfim, mudam seus hábitos, mas não mudam de time de futebol. Ser torcedor, neste sentido, constitui uma espécie de “radical” de nossa identidade, ou seja, aquilo que não muda. Ser torcedor, deste ou daquele time, faz parte da maneira pela qual nós nos colocamos no mundo e que, portanto, nos define. No Rio Grande do Sul, por exemplo, há no futebol, em nível de torcidas majoritárias, a polarização entre gremistas e colorados. A definição que se busca, em ambos os lados, caracteriza-se pela expressão “eu sou” (isto ou aquilo).
A expressão usada e a forma como se organiza a pronúncia da frase diz muito, embora, não pareça. Nenhum torcedor se define dizendo “eu faço parte da torcida X ou Y.” Ao responder a pergunta ele dirá “eu sou X ou Y.” Logo, o que se pode pensar é que nós nos projetamos sobre as coisas as quais julgamos ser de nossa predileção e ela passa a integrar parte do nosso eu. Assim, nos tornamos maiores do que realmente somos. Para muitas outras coisas, usamos pronomes possessivos para buscar referência como, por exemplo, meu carro, minha casa, meu trabalho, minha família, meus amigos e assim por diante.
Estendemos-nos sobre outras coisas e as tomamos como parte de nós, de modo análogo, como se fosse um órgão vital. Esta ampliação de nosso eu engloba, também, o time pelo qual torcemos. E nesta relação, o fenômeno é ao contrário do que eu acreditava. Não somos nós que fazemos parte do time ou do conjunto de torcedores X ou Y, e, sim, o time e o conjunto de torcedores que fazem parte de nós como constituintes do que somos; material e simbolicamente.
Por esta razão, ouvimos falar de torcedores que protestam quando o time não vai bem; briga entre torcedores etc. Tudo isso porque é esta parte de nós que quando está sofrendo algum tipo de ameaça precisa, rapidamente, ser socorrida. As manifestações, neste sentido, muitas vezes, são tomadas como ato puramente irracional, contudo, acredito que são atitudes pensadas, calculadas, medidas e pesadas que atuam no sentido de resgatar a honra, como se alguém tivesse colocado em risco nossa integridade física.
O ato de torcer por um time de futebol posiciona uma parte de nós no mundo e, portanto, dá sentido a nossas, ou ao menos para a vida de alguns. Embora que aqui pareça haver proselitismo em favor do futebol, na verdade, se alguém pensou isso, não é esse o propósito deste escrito. Quando nos propomos a entender certos fenômenos é necessário, antes de tudo, abandonar alguns modelos, preconceitos, ideias a priori e assim por diante. Evidentemente, futebol é um assunto complexo e inesgotável, no entanto, intentar perceber algumas de suas características às vezes se faz preciso.
É uma atividade social, antropológica e, também, histórica. Também é cultura popular e um negócio milionário. Uma verdadeira indústria de jogadores, treinadores, uniformes, marketing e tudo o quanto possa ser convertido em renda para os times. Enfim, tudo isso faz parte de nós e, por isso, é tão difícil emitir opiniões não passionais, tanto em favor quanto contra o futebol.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Bem Vindos a Selva: mitologia e história

Bem Vindo à Selva
            Em 1987, a banda estadunidense Guns in Roses, lançou o álbum Appetite for Destruction, que viria a ser um dos mais vendidos da história do rock. A primeira faixa, intitulada Welcome to the Jungle (tradução: bem vinda à selva), é uma narrativa que se refere à cidade, metaforicamente tratada como selva. A descrição é temerosa, sombria e, por vezes, de repúdio a ela. Trata da história de uma mulher, anônima e de lugar indefinido, recém-chegada a uma grande cidade. O narrador da história é o seu guia. Ele a apresenta a selva; a selva de pedra. Lugar de perdições e prazeres mundanos, mas que, no entanto, só serão adquiridos se comprados; eis a dificuldade.
            Para conseguir dinheiro, todavia, é preciso ir a “caça”. A caça, por sua vez, sugere a interação da mulher recém-chegada com a selva; um mundo inculto, insalubre, desconhecido e cheio de armadilhas. A selva, cenário desta narrativa, figura como lugar em que a mulher personagem passa a ser desafiada. A relação cidade-selva se dá neste sentido; local que desafia as habilidades humanas e que exige, nesta interação, o domínio humano sobre a selva. Contudo, a analogia feita pela narrativa expressa certo paradoxo. De um lado a selva com seus adereços primitivos e de outro a cidade. Mas o que seria a cidade?
            Poderíamos nos deter em uma análise etimológica destes dois termos, contudo, aqui foi feita a opção por uma abordagem sociocultural em torno destes conceitos. A palavra cidade vem do latim civita, que significa reunião de cidadãos. Enquanto que selva, do latim silva, significa mato. Ao longo da história da humanidade, as cidades foram percebidas como a materialização da evolução humana; símbolo da civilização. Contudo, nem todos os povos edificaram cidades e, a estes, cunhou-se expressões como bárbaros, silvícolas, povos atrasados, incultos; índios.
            Estes, por sua vez, viviam aos milhões pelos territórios que viriam a serem chamados de América pelos europeus. Estas expressões confundem-se. Até tornaram-se sinônimos para se referir as populações que viveram fora da Confederação Astéca ou do grande Império Ínca, por exemplo. No Brasil, espaço ocupado por inúmeras parcialidades indígenas do tronco linguístico tupi-guarani até o século XVI, por exemplo, não possuíam grandes centros urbanos e, por esta razão, muitos estudiosos interpretaram como atraso em comparação aos íncas maias e astécas. A partir deste quadro, podemos iniciar um breve exercício teórico. Seriam estas populações realmente atrasadas? O que realmente nos difere deles?
            No caso específico das populações guaranis, que passaram por inúmeros sobressaltos após o contato com os europeus – encomienda, compartimiento, cristianização, extermínio e perda de territórios –, cada fenômeno descrito rendeu uma vasta literatura, principalmente durante o período missional jesuítico (séculos XVII-XVIII). As pesquisas etnográficas mostram que os padres jesuítas viam os guaranis como bárbaros não civilizados. Não reconheciam neles capacidade alguma de organização social, nem mesmo a possibilidade de possuírem um sistema de crenças bem definidos. Afinal, não possuíam imagens, ídolos ou livros sagrados; logo, não possuíam religião.
            No entanto, os antropólogos questionaram-se a este respeito em virtude destes mesmos jesuítas, ao mesmo tempo, terem admitido ter sido muito difícil ministrar a catequese entre os guaranis. Ora, se não havia uma religião definida, porque foi difícil a catequese? Hoje a antropologia reconhece, por meio de estudos etnológicos, que a própria organização social dos guaranis compõe uma religião. Há entre os povos guaranis a reiteração, em diferentes pontos do Brasil, do chamado mito da terra sem máles. Os antropólogos já o identificaram também nos textos jesuíticos e entre os guaranis de hoje. Para os guaranis, de um modo geral, a terra sem máles é o paraíso. Lugar onde não há dor, nem sofrimento. Onde os alimentos crescem sem ter de plantá-los e, a caça, vem morta aos pés dos caçadores.
            Para os guaranis, considerados por muitos como povo errante, a terra sem máles, no entanto, é um lugar físico e que fica a leste, sempre em direção ao mar. Diz o mito guarani que cansado da maldade dos homens, Nhanderú, deus supremo dos guaranis, resolveu destruir a terra em um grande fogo. O ser supremo avisou Guiraypoti, o grande pajé, e ordenou que ele dançasse e fizesse rituais por toda uma noite. Ao final, Nhanderú retirou um dos esteios da terra e, então, o fogo alastrou-se. Guiraypoti, com isso, juntou sua família e partiu para leste, em direção ao mar. Depois de ter lá chegado, construiu uma casa e continuou com as danças rituais. Mas o fogo chegou e Guiraypoti teve que subir no telhado da casa com sua família.
            A água do mar começou a subir para apagar o fogo da terra e o grande pajé evocou o canto sagrado dos guaranis. Foi então que a casa começou a subir em direção aos céus. Para os guaranis, o lugar para onde foi Guiraypoti e sua família é a terra sem máles. É notório que a história dos guaranis é marcada por grandes migrações rumo ao leste. A busca pela terra sem máles, ainda que não tenha fornecido provas empíricas aos historiadores, para os guaranis é uma jornada rumo à elevação do espírito; uma busca pela eternidade. Para eles, os guaranis de hoje, os padres jesuítas não eram juruás (homens brancos), eram guaranis, grandes pajés (Karaís), que alcançaram a terra sem máles, portanto, foram homens que alcançaram a eternidade.
            A prova disso, para eles, são as ruínas das antigas missões. As pedras, para os guaranis, são os ossos da Terra, símbolos da eternidade. Eles entendem que os Karaís ou Nhanderú Mirins (padres jesuítas) deixaram as ruínas para indicar o caminho da terra sem máles. Contudo, mesmo que na escatologia guarani, como em muitas outras, encontre-se referencias a um lugar transcendental, o mundo físico é interpretado de modo sagrado. A própria origem de Nhanderú conta com elementos da natureza, como podemos perceber pelo trecho que segue:

Nosso pai, o último nosso pai, o primeiro, fez com que seu próprio corpo surgisse da noite originária [...] Divino espelho do saber das coisas [...] No cimo da cabeça divina as flores, entre as plumas que o coroam, são as gotas de orvalho. Entre as flores, entre as plumas da coroa divina o pássaro originário, Maino, o colibri, esvoaça, adeja. Nosso pai primeiro, seu corpo divino ele desdobra em seu próprio desdobramento, no coração do vento originário (A fala sagrada dos guaranis; apud, CLASTRES, 1990, p. 24).
        
            Até aqui, já poderíamos traçar algumas considerações em torno de nosso exercício. Para os guaranis do passado e para os de hoje, a natureza é sagrada por que ela é parte do ser supremo. Ao contrário, para nós a natureza não representa nenhum aspecto neste sentido. Assim chegamos a uma grande diferença entre nós, humanos herdeiros de séculos de cultura destilada aos moldes judaico-cristãos, construtores de grandes cidades e criadores de grandes maravilhas tecnológicas e eles – povos atrasados, incultos e incapazes de elaborar coisas desse tipo; enfim, incivilizados. Poderíamos até parar por aqui. Afinal, não seria nada difícil encontrar diferenças entre índios e não índios. Contudo, nosso exercício continua.
            Para isso, é preciso reportar-se aos estudos do historiador Keith Thomas (1983) acerca das relações do homem moderno com a natureza; o mundo natural. Thomas investigou nosso mito de origem expresso no livro de Gênesis. Segundo ele, ao contrário do que muitos pensam, as preocupações da humanidade em torno da natureza são mais recentes do que se imagina. Vamos ao mito. Em Gênesis encontra-se a narrativa que conta a origem do homem. Os primeiros humanos, Adão e Eva – como todos sabem –, viviam no paraíso e foram expulsos de lá, logo após terem comido o fruto proibido.
            Isso significou para o homem a quebra do contrato com Deus que estipulava a Adão e Eva o seguimento incondicional de seus desígnios. Como punição, Deus enviou-os a Terra onde teriam que prover a sua sobrevivência. É neste momento que a jornada humana sobre a Terra se inicia. Uma história de dominação sobre a natureza legitimada pelas sagradas escrituras do Antigo Testamento. Como diz em Gênesis:

Temam e tremam em vossa presença todos os animais da terra, todas as aves do céu e tudo o que tem vida e movimento na terra.  Em vossas mãos pus todos os peixes do mar. Sustentai-vos de tudo que tem vida e movimento (Gênesis IX, 2-3; apud: Thomas, 2010, p. 23).

            Seguindo o raciocínio de Thomas, chegaremos à conclusão de que o mundo natural assume um papel utilitarista para a humanidade. A natureza e todos os seus recursos foram designadas por Deus para o sustento dos homens e, para isso, no entanto, era necessário interagir com o mundo natural. Era preciso transformar o inculto em culto: desbravar as selvas e transformá-las em áreas cultiváveis; criar animais para alimentar-se e assim por diante. Ao dominar a natureza, ao mesmo tempo, o homem judaico-cristão excluiu-se do mundo natural, vindo, então, a criar o seu próprio mundo em oposição à natureza, ou seja, as cidades. Genericamente, nós ocidentais não nos reconhecemos como partes integrantes da natureza e nosso mito de origem representa muito bem nosso papel no meio ambiente.
            A relação cidade-selva apresentada na música da banda Guns in Roses, por exemplo, segue esta premissa. Espera-se que a cidade seja o que foi feita para ser; o artifício humano e seu isolamento do mundo natural, mesmo que ilusório. Por outro lado, na letra da música, encontra-se a analogia da cidade como palco de comportamentos primitivos, nocivos e distantes da civilização, expressos nos “devaneios” descritos. Para o antropólogo Carlos Rodrigues Brandão (1994) os homens ocidentais, neste isolamento, colocaram a natureza em uma posição hierarquizada em relação a eles e, tudo o que existir no mundo natural sem ter passado pela transformação da técnica humana, é colocado no plano inferior do primitismo.
            Para os guaranis, no entanto, o mundo natural, parte integrante do ser supremo Nhanderú, figura como sujeito e não coisa. A água, as plantas, os animais e os homens são parte de um mesmo plano. Não há hierarquias nesta relação. Os deuses do panteão guarani vivem nas florestas, nas pedras, nos rios, nas noites, nas tempestades e no orvalho das manhãs. O mundo natural constitui uma parte integrante de uma complexa rede de trocas entre homens e natureza. Tudo isso é formado entre a socialização dos significados que o mundo natural adquire para os guaranis. Os mitos, os rituais e tudo que pode caracterizar uma etnologia guarani, nada mais são do que as formas pelas quais eles se relacionam com a natureza.
            Aqui, chegamos a mais uma parte de nosso exercício; a comparação entre duas formas bem distintas de relação com a natureza. Brandão, em estudo sobre os discursos e reivindicações dos povos indígenas na ONU, na década de 1980, fez interessantes distinções a respeito do modo indígena de pensar o mundo e o modo “branco” ocidental europeu (do qual somos herdeiros). Para Brandão existem sistemas de pensamento bem distintos. Eles se organizam a partir da relação dos homens com o meio ambiente, ou seja, o mundo natural. Para Brandão, os indígenas em relação oposta aos “brancos” ocidentais, percebem o mundo natural em uma permanente relação de trocas, caracterizando o que ele chamou de dívida e dádiva.
            A terra para os indígenas, por exemplo, fornece os alimentos e os meios materiais básicos para a sobrevivência. Nela enterram-se os mortos, para que um dia retornem a vida, completando um ciclo de vida e morte. Nesta relação de trocas, os homens fazem parte do mundo natural e, as diferentes formas de se relacionar com ele, caracteriza o que chamamos de cultura. Essas relações com o mundo natural são codificadas em símbolos, como danças, mitos, rituais, desenhos e, sobretudo, nas relações entre os homens. Tudo faz parte do mundo em uma relação entre iguais, por haver troca constante entre eles.
            A natureza figura como sujeito, diferentemente dos “brancos” ocidentais, que pertencendo a outro sistema de pensamento, reificam o mundo natural, não havendo, portanto, relação de trocas entre homem e natureza. Os “brancos” não se vêem como parte do mundo natural e, por isso, fabricam o seu próprio mundo paralelo e artificial, materializado nas cidades; as selvas em pedra. A natureza e seus recursos, neste sentido, tornam-se passíveis de serem explorados indiscriminadamente. O sistema de pensamento “branco” ocidental, portanto, estabelece uma funcionalidade as “coisas” do mundo natural, transformando-as em seus utensílios, considerados na perspectiva de acumulação, sendo então distribuídos desigualmente. 
            Brandão, ainda diz que, os “brancos”, por tratarem a natureza de forma hierarquizada, ou seja, submetida aos propósitos humanos, acabam projetando esta relação também às interações sociais, tornando, assim, “natural” um homem ser superior frente outro. Devido a estas diferenças, as sociedades ocidentais, se organizam de maneira desigual por entenderem que tudo no mundo natural é passível de conquista e dominação pela técnica; até mesmo outros homens. Aqui, podemos nos lembrar do extermínio das populações indígenas da América e dos escravos africanos. As sociedades indígenas, contudo, por estabelecerem uma relação de trocas (dívidas-dádivas), entendem que a natureza possui grau de parentesco e, por isso, não pode ser conquistada, dominada ou comercializada.
            Enfim, o que se percebe neste exercício são as diferentes formas de cultura e alguns traços gerais que as caracterizam e que se tornam para um pesquisador das sociedades modelos explicativos plausíveis. O estudo do mito parece servir como um bom laboratório de observação dos modos pelos quais se organizam uma determinada coletividade. Seja das selvas de árvores, seja das selvas em pedra. O mito é parte da cultura de cada povo, que por sua vez, é a forma pela qual os homens representam o tipo de relação que eles estabelecem com o mundo natural.
           

sábado, 2 de abril de 2011

Agradeço aos amigos e, também, aos demais que frequentemente acessam este blog, ainda em fase experimental. Tenho tido pouco tempo para escrever, mas sempre que possível tentarei dar certa regularidade aos escritos. Escrever sem compromissos é uma atividade paradoxalmente cheia de responsabilidades. No caso dos contos presentes neste blog, em especial a série Devaneio Urbano, representam certos aspectos do que pensa seu produtor a respeito da sociedade em que vive; eis a responsabilidade. Desde já, peço desculpas por qualquer equívo, transtorno ou qualquer tipo de desconforto que a leitura destes contos possa produzir.

Muito obrigado a todos, e continuem acessando!!

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Blog do Madruga: Devaneio Urbano: O Guardador de Carros

Blog do Madruga: Devaneio Urbano: O Guardador de Carros

Devaneio Urbano: O Guardador de Carros

Durante muitos anos, na mesma rua, um homem de meia idade guardou carros. Chamavam de Seu Carlos. Antigo morador das ruas da grande metrópole, encontrou um meio de desempenhar sua atividade que proporcionava algumas míseras moedas cujo destino era o conhecido bar do Caçapa, local em que comprava cachaça. Era um destes bares operários onde muitos deles faziam sucursal de suas casas. Seu Carlos era um frequentador de carteirinha. Para os que o conheciam, era difícil vê-lo sóbrio. Vivia, em maior parte, de doações dos moradores da Rua das Alamedas, lugar onde era guardador de carros. Poucos se perguntavam sobre seu passado. Deixavam-se levar pela impressão primeira causada pela figura de um homem, que aparentava cinquenta anos, de barba espessa, olhos arregalados, magro, pardo e pouca estatura. Andava mal vestido, roupas sujas e rasgadas, cabelos grisalhos e voz sempre rouca devido ao uso excessivo de cigarros.
Seu Carlos tinha sido um homem modal como qualquer outro. Casou-se jovem; aos 20 anos. Com emprego fixo, teve uma esposa e dois filhos. Teve casa própria e até um carro. Desempenhou papel de metalúrgico por 17 anos ininterruptos. Mas era após o expediente de trabalho que Seu Carlos aspirava maior simpatia durante os dias de sua vida. Diariamente, ia com outros colegas de trabalho a um bar que ficava próximo da empresa onde trabalhava. Lá, seu Carlos bebia tudo quanto não podia. Não foram poucas as vezes em que seus colegas tiveram que conduzi-lo até sua residência, devido a embriaguês profunda. Sua mulher, que trabalhava o dia todo, ficava muito irritada com as bebedeiras do marido. Se todos que bebem precisam de um motivo, onde está o de Carlos? Assim se perguntava sua esposa. Ela não compreendia.
Na verdade, a sociedade imprime modelos perante seus membros. Contudo, sua esposa não conseguia perceber. Carlos, trabalhador e pai de família, deveria em sua trajetória, ser nada mais do que isso. Porém, após o trabalho, depois de suas bebedeiras, vinham as farras. Ele gostava de frequentar casas de tolerância. Entre as prostitutas contava sua história de vida que, certamente, ninguém fora dali, em qualquer outro lugar, estaria disposto a ouvir. Passou a viver uma vida de perdição, entre o alcoolismo e o adultério. Sua esposa, cansada da situação, acabou pedindo separação. Depois disso, Seu Carlos teve que ir embora de casa. Sua vida de alcoólatra levaria ainda ao desemprego e, depois da demissão, Carlos nunca mais voltaria a trabalhar como assalariado. Questionava sua existência e não compreendia o porquê de ter perdido sua família e seu emprego.
Em meio às intempéries da vida, Seu Carlos encontrava no álcool, em tempos de operário, seu refúgio. Em seu estado sóbrio, sentia-se como um suicida a beira de um abismo. Sedento de seu néctar, conversor da realidade em ilusão etílica, voltava-se para si e percebia que os prazeres da vida mundana lhe proporcionavam um local privilegiado em sua miserável existência. Como trabalhador assalariado ele era apenas mais um, sem face, sem nome; enfim, qualquer um que anda por aí sem importância alguma, daqueles que não se dá à mínima. Mas em suas aventuras, nas boates, comprando seu prazer, demonstrava certo poder que socialmente lhe era negado. Afinal, ele não era ninguém importante. Mas as dançarinas chamavam por seu nome. A cada vez que isso acontecia, ele se sentia mais vivo; mais importante. Via nos olhos delas que estavam mentindo. Diziam para ele que o amavam e que ele era alguém especial. Sabia que era tudo parte do plano daquelas notáveis e volupituosas mulheres para tirar-lhe o dinheiro. Mesmo assim, desviava os rendimentos de seu trabalho da dispensa de sua casa para os quadris das dançarinas. Pagava-lhes bebidas caras, do tipo que sua esposa nunca imaginara a existência.
Por ter levado esta vida boêmia, Seu Carlos perdeu sua família e, devido as constantes ressacas, viria perder seu emprego. Depois disso, viveu na desgraça completa. Transformou-se em andarilho das madrugadas, revirando latas de lixo e juntando cigarros do chão. Perdeu a dignidade, e vivia como um homem sem história, embora tivesse muitas para contar. Por quatro anos viveu assim. Tempos depois, conseguiu moradia no albergue da cidade, junto a outros mendigos. Um dos albergados conseguiu para ele uma vaga de emprego informal. A remuneração não era lá essas coisas, porém a aceitou. Tratava-se de uma vaga de guardador de carros no estacionamento da Rua das Alamedas. Ali, Seu Carlos experimentou de certa prosperidade, depois de sucessivos anos em desgraça. Ganhou um quarto no estacionamento, com televisão, cama, fogão e geladeira, fazendo com que ele abandonasse o albergue. Seu patrão negociou com ele a moradia por redução de salário; ele aceitou.
Ganhava um quarto do que era pago aos demais funcionários do estacionamento. Com este dinheiro, comprava cigarros e bebidas. Mantinha-se constantemente alcoolizado, porém, mesmo que o álcool alterasse seus sentidos, conseguia executar sua tarefa sem maiores problemas. Na verdade, ele bebia as escondidas. Mas, seus colegas no estacionamento sabiam o que ele ia fazer a cada vinte ou trinta minutos no interior de seu quarto. Seu Carlos sentia-se solitário. Tinha saudades da família. Arrependia-se de ter sido tão estúpido. Culpava-se por toda a série de acontecimentos que o levaram a estar ali; naquele momento. Novamente, o que lhe ocorria como consolo era se afogar na bebida. Sabia que ninguém se importava com ele. Tinha consciência de sua condição. Não tinha com quem passar o natal e o réveillon, não tinha quem lhe desejasse feliz aniversário ou que lhe confortasse as angústias. Era só por completo. Sua única companhia era ele próprio, entorpecido e vagando pela escuridão das madrugas.
No estacionamento, muitos o olhavam com indiferença. Imaginava que as pessoas que o olhavam pensavam que ele não era gente. Algumas até podiam sentir pena. Mas, de fato, o desprezo era mais evidente. Em uma noite de carnaval, o estacionamento estava lotado. Seu Carlos havia sido convocado para manobrar um carro importado, que pertencia a uma refinada jornalista. Neste instante, a embriaguês o traiu e, quando se deu conta, já havia batido o carro. Furioso, seu patrão o mandou embora naquele mesmo instante. Mesmo implorando, Seu Carlos teve de deixar o estacionamento. Desde então, seu endereço foi as calçadas da Rua das Alamedas. Tentava sempre arrancar algumas moedas dos figurões que deixavam seus carros estacionados ali; um pouco mais distante do estacionamento onde trabalhou. A vizinhança sensibilizou-se com aquele homem que dormia pelas calçadas. Davam-lhe comida, água e algumas roupas. Observava que até os cães abandonados tinham melhor sorte. Sempre havia alguém disposto a tirar um animal das ruas, porém, nunca um homem.
Aproximava-se o rigoroso inverno. As madrugadas, cada vez mais gélidas causavam-lhe grande desconforto. Em uma destas noites, Seu Carlos, acompanhado de uma garrafa de cachaça junto ao corpo, resolveu procurar um lugar para dormir. Andava com muitas dificuldades devido à embriaguês avançada. Respirava com o peito quase imóvel devido a um visível quadro de hipotermia. Os termômetros marcavam cinco graus negativos aquela noite. Seus trajes eram uma calça jeans velha, um blusão feminino doado por uma moradora da Rua das Alamedas. Sobre o tórax levava um casaco com carapuça. Enrolou uma camiseta, outrora de um bloco de carnaval, ao rosto, na tentativa de diminuir o frio. Durante sua busca, por um melhor lugar para passar a noite, Seu Carlos colecionou muitas quedas durante o trajeto. Falava ao vento, e quem via não entendia nada. Para alguns, tratava-se de um louco. Para outros, apenas mais um destes vadios que andam pelas ruas.
Seu Carlos, na verdade, assumiu sua condição de homem sem nome, sem face, desconhecido e não lembrado. Em suas ideias vãs, lembrava-se de toda sua vida, que a partir daquele momento esvaia-se na madrugada. Caiu mais uma vez e, depois de muito esforço, levantou-se novamente. Olhou para as luzes nos postes, reparou no rosto das pessoas e na forma com que olhavam para ele. Olhava para a avenida e no intenso movimento de carros. Deu mais alguns paços e caiu mais uma vez. Tentou erguer-se; ficou de joelhos. Sentia muito frio. Com extrema dificuldade, conseguiu erigir o corpo. Andou até o viaduto e ali fez sua pernoite derradeira. Caiu em baixo do viaduto e, desta vez, não se levantou mais. Já não via mais o brilho das luzes nem o movimento.
Sentiu sono, sede, frio e solidão. Caiu de costas para a calçada que, desde então, passou a roubar-lhe o que restava de calor de seu corpo. A garrafa, quase vazia, rolou para longe e já não conseguia mais busca-la. A noite fria atuava como facas em suas entranhas. Derrepente começou a perder sensibilidade no corpo inteiro. Olhava para cima e tudo que via era o concreto do viaduto. Seu corpo preparava-se para o estado de óbito. Seu Carlos morreu aquela noite, em baixo de um viaduto, vítima de hipotermia. Antes de morrer imaginou que ninguém viria lhe buscar, ou mesmo lhe procurar. Pela manhã, logo cedo, a polícia encontrou seu corpo sem vida. Não havia documentos. Ao buscarem por informações, descobriram que seu Carlos era morador de rua. Os moradores da Rua das Alamedas acusaram que o conheciam e que lhe prestavam alguma ajuda.
Sem ser possível saber de sua identidade, não se encontrou nenhum parente. Nem mesmo os amigos de farras ficaram sabendo. Na verdade nunca o procuraram, após a demissão da metalúrgica.  Ele foi enterrado como indigente. Seu Carlos, talvez tenha compreendido o valor de um homem durante sua existência. Alguns nascem invisíveis, outros são iluminados pela luz. Os primeiros, ao tomar consciência disso, entregam-se ao devaneio e sucumbem a própria sorte. Vivem no anonimato, na invisibilidade e no fundo sabem que milagres não existem. Não há luz para eles. E no final, tentam tornar real o que sentem e virtual o que são sutilmente levados a acreditar. Bebedeiras, mulheres e amigos de bar. Enquanto pôde, Seu Carlos construiu sua utopia contrastada com o mundo social em que os homens são escravos de suas próprias regras. Neste mundo, o sucesso é medido pelo respeito a elas. Aos demais, fica assegurada a sorte de uma vida infeliz e uma morte desgraçada.

domingo, 20 de março de 2011

Devanio Urbano: J.

            Na escola, aos nove anos, parecia ser um menino qualquer. Taciturno, despercebido, pálido, meio raquítico e disléxico. Motivo pelo qual seus colegas de classe lhe prestavam um número variado de zombarias. Em casa, sua mãe o chamava de Juliano. Na rua, entre os outros moleques, era chamado simplesmente de J. . Tinha mais dois irmãos entre os quais era o primogênito. Seu pai era profissional da construção civil e sua mãe era diarista, J. aprendeu desde cedo os códigos normativos da periferia. Seu pai chegava a sua casa, diariamente, embriagado. Entorpecido e violento, ele espancava a mãe e a todos os filhos. Em seu emprego, a mãe tentava sempre omitir o que lhe causava tantas manchas roxas pelo corpo.
            Por muitos anos J. foi um assíduo telespectador do espancamento de sua família, até a denúncia feita por parte de uma vizinha indignada com a situação. Dona Rita, mãe de J. tomou coragem e deu parte do marido. Depois de exames de corpo de delito, a ocorrência policial foi taxativa em constatar mais um caso de violência doméstica. J. e seus irmãos também fizeram exame, motivando a polícia a pedir prisão preventiva do pai agressor. Depois do ocorrido, J. e seus irmãos nunca mais o viram. Na escola em que estudava todos ficaram sabendo do ocorrido, fato que certamente contribuiu com o descrédito conferido a ele frente aos professores e aos colegas.
            Agora, filho de uma família desestruturada, filho sem pai, J. aprendia outras lições que escapavam ao que os professores propunham em suas aulas. Na periferia todo moleque, obrigatoriamente, deve ser bom de briga e bom de bola. Seu sucesso neste meio depende de sua habilidade com estas duas questões. J. destacava-se brigando. Defendia-se de seus colegas que tentavam impor a ele uma série de humilhações. Mas aos olhos dos professores, quem causava todas as desordens era o J.. Seu comportamento aliado ao seu baixo rendimento escolar proporcionou, ao longo dos anos, o afastamento do pequeno J. dos bancos escolares.
            Era na rua, entre seus amigos, que sua vida ganhava sentido. Na rua ele não era humilhado, nem considerado atrasado ou incapaz. Na rua, aos treze anos, conheceu a maconha e, quando não a tinha, usava cola de sapateiro com solvente, produto de fácil acesso para menores onde morava. Aos quatorze, sua mãe já não geria nenhuma autoridade sobre ele. Envolveu-se em pequenos furtos e, aos dezesseis foi recolhido a Fundação de Atendimento Socioeducativo (FASE). J. colecionava em sua ficha, entre outras coisas, assalto a mão armada, motivo pelo qual foi condenado a ficar até os dezoito anos recebendo as penas que a lei julgava ser eficiente a um menor infrator.
            Durante o cumprimento da pena, sua mãe o visitou poucas vezes. Teve como grande amigo um menino chamado Tiago, recolhido a FASE por latrocínio. Tiago foi libertado dois meses antes de J. , que prometeu encontrá-lo após a libertação. Depois de passado os dois meses, Tiago e J. reencontraram-se. Tiago, de temperamento explosivo e muito agressivo, gostava de cerveja e Cocaína. J., então, passou a conhecer uma poderosa droga. Bastaram algumas carreiras para o raquítico J. ficar completamente viciado. Os dois ainda eram acompanhados pelo Poder Público, que visava garantir a reintegração completa dos dois novamente à sociedade; isso durante seis meses, a contar da data de libertação. A primeira exigência feita pelo juiz da Vara da Infância e da Juventude a eles obrigava-os a arrumarem um emprego.
            Contudo, os empregadores, todos, mostravam-se relutantes a darem uma vaga de emprego a menores infratores. Diziam os empregadores que eram meninos sem confiança. J. e seu amigo Tiago encontravam-se em uma estranha fronteira. No fundo, desejavam participar das coisas do mundo lícito e “perfeito”, contudo, eram excluídos dele na mesma medida em que tentavam integrá-lo. Eram estranhos nesse meio. Como se pisassem pela primeira vez em terra firme. Mas o mundo dos homens escolhe seus homens. Escolhe àqueles que carregam a marca dos aptos a fazer parte dele. Segrega e elimina àqueles cujo destino, na verdade vontade dos homens, julga não ser alguém que possa fazer parte da grande coletividade.
            J. e Tiago, agora, andavam por estreitos corredores, escuros e úmidos, cuja direção, mesmo incerta, levá-los-ia novamente ao ponto de partida. Na certa voltariam aos delitos. Pobres garotos. Carregavam em si um ódio silencioso, porém mortífero. Não podiam compreender.  Não compreendiam o porquê de não terem a confiança da sociedade que esperava deles o fim de seus desvios. Porém esta mesma sociedade, ao mesmo tempo em que oferecia com uma das mãos ajuda, com a outra mostrava o açoite. Disse um poeta, uma vez, que a mão que afaga é mesma que apedreja. Na certa, J. e Tiago compreendiam muito bem esta metáfora.
            Sem chances no mundo dos homens, continuaram a fazer o que de certa forma foram imbuídos de fazer. Era uma noite de inverno dos idos de 2003. J. e Tiago haviam decido roubar carros, pois isso era coisa de homem. Roubar tênis e celular era coisa para meninos, ponderavam. Não precisavam nem usar armas. Apenas um pé-de-cabra e uma pedra bem pesada, capaz de estourar parabrisas. Nesta mesma noite, os dois amigos haviam tomado muito conhaque junto com algumas carreiras de cocaína. Era próximo das 23 horas quando decidiram sair às ruas. Não tinham muita experiência no ramo. Roubar carros não era tarefa muito fácil. Tinham de ser rápidos e discretos. Na vã filosofia de um jovem ladrão, o risco é compatível com a conquista do roubo. Quanto mais arriscado, maior é a glória do furto. Engana-se quem pensa que os ladrões roubam somente para sobreviver.
            J. e Tiago precisavam mostrar ao mundo do que eram capazes. Andaram por metade da cidade e, enfim, encontraram um modelo de carro que estava do agrado. Era um modelo esportivo, daqueles que alimenta os sonhos de consumo de muitos. Combinaram-se, partiram em direção do automóvel. Enquanto um arrombava o outro ficava vigiando. Tiago estourou o parabrisas e, então, o alarme disparou. Apavorados, os dois apressaram-se. Mas o barulho do alarme chamou atenção da vizinhança. Um homem de meia idade veio até a sacada do prédio em que morava para ver o que estava acontecendo. Foi então que avistou, entre a escuridão e a luz, os dois garotos no meio de toda a ação. O homem era policial aposentado. Correu em direção ao interior de seu apartamento, pegou sua arma, uma pistola automática, e voltou rápido à sacada.
            Os meninos não haviam percebido que estavam sendo observados. Ao abrirem a porta do carro ouviram um disparo que acertou o asfalto. Tiago viu o homem atirar mais uma vez acertando a lataria do carro. J., sem saber o que fazer, decidiu sair correndo. Tiago ficou paralisado. Olhou para o homem na sacada do prédio com a arma em punho, preparando-se para mais disparos. J., já a uma certa distância, corria o mais rápido o quanto podia. Tiago ouviu mais três disparos e seu amigo sumiu na escuridão. O homem decidiu descer. Tiago, percebendo a movimentação, correu na mesma direção de J.. Depois de alguns metros encontrou J. caído. Tentou levantá-lo. Percebeu que havia um rombo em sua cabeça e dois grandes buracos em suas costas de onde saia muito sangue.
            Apavorado e sem saber o que fazer, Tiago foi correndo para a casa de sua irmã, onde contou todo o ocorrido. O policial inativo veio até a rua junto com seus filhos, já adultos. Encontrou o corpo de J. caído embebido em uma poça de sangue. Ao perceber que havia o matado, o homem desesperou-se. Imediatamente, ele convocou alguns vizinhos para servirem como testemunhas. Na versão contada por ele, durante o registro de ocorrência, disse aos policias que o menino tentou invadir sua casa ameaçando-o com o pé-de-cabra. Dias depois, Tiago compareceu a polícia para relatar o que tinha acontecido naquela trágica noite em que perdeu seu amigo. Seu relato não entrou nos altos do processo. Não foi feito nem o teste de balística no corpo de J.. O caso foi arquivado.
            Tiago por ter sido menor infrator e depois da maioridade ter algumas passagens pela polícia, não recebeu credito algum no depoimento que prestou. O homem que assassinou J., com três tiros pelas costas, tinha influência no departamento e conhecia o juiz da vara criminal desde a infância. O velho policial era um homem respeitado por seus vizinhos. Sua ação foi entendida como sendo em defesa da comunidade. Os vizinhos ainda diziam que o assassinato de J. era justificável, pois tratava-se de eliminar mais um vagabundo do mundo. O caso foi noticiado pela imprensa local com o título “policial mata ladrão que tentava assaltar sua casa”. Imaginem o que pensava a mãe de J. que chorava aos prantos sobre o caixão do filho. Em que justiça ela acreditaria? J. enquanto viveu não poderia compreender que o mundo dos homens não havia deixado espaços para ele. Sua morte integrou as estatísticas e sua vida passou despercebida.

domingo, 6 de março de 2011

Devaneio Urbano

             Em uma esquina qualquer, um cara qualquer. Andando pela selva de pedra, vendo a todos; andam apressados em busca da caça. A noite virou dia e o dia virou noite. Frenesi do cotidiano; deixa todos fora de rumo, feito partículas abandonadas no vácuo. Sem um curso certo, eu também ando por aí, de um bar em outro, procurando sanar minhas dúvidas. Tomo minha cerveja e observo. Executivos e outros homens importantes, todos procurando obter de prostitutas àquilo que julgam não ser possível se ter em casa com suas esposas. Pobres tolos; presos em suas ilusões momentâneas, não percebem a série desastrosa de equívocos que até mesmo um homem dotado de algum esclarecimento é capaz de cometer. Mas é o momento. Querem, enfim, apenas prazer; elas o dinheiro. Então, acaba ficando bom para todos. Continuo observando. Policiais reprimem travestis do outro lado da rua. Estranho; um deles é o mesmo que saiu com outro deles noite passada!
            Não entendo mais o mundo. Patrocinamos nossas frustrações, porém, jogamos nossa culpa nos outros. O menino guarda os carros na calçada, mas quase sempre não recebe suas desejadas moedas. Há quem diga que ele está ali porque simplesmente quer. Escolheu ser um vagabundo que pede esmolas. Coitado! Será mesmo? Não teve melhor sorte? Na certa, usará suas moedas para obter um pouco de cola de sapateiro para enganar seu sistema nervoso central e, então, ludibriar seu sofrimento de ser um despossuído. Aos olhos do bacaninha que pegou o carro do papai para impressionar a garota que aceitou sair com ele, este menino é como se fosse lixo. Um resíduo social cuja existência está fadada a excreção.
            Continuo observando. Carros e mais carros, fumaça e muito barulho. Aqui neste bar, alguns de seus condutores encaminham-se para entorpecer seus pensamentos. Acompanham suas bebedeiras muita comida com gordura saturada. Entre eles, alguns meninos e meninas vendem bugigangas. Ninguém as compram. Não sei o que é, mas todos ficam diferentes a noite. É como se pudessem dar vazão ao que não podem ser a luz do dia. Fico pensando. Pergunto-me: por que tanta gente sai à noite? Por que eu mesmo saio de casa? Não tenho uma resposta. Nem sei bem ao certo se um dia terei. Olhando para toda esta gente, vejo que alguns estão por aí buscando uma boa transa, drogas, esquecer-se dos problemas. Falam do trabalho que não gostam, reclamam de seus chefes. Outros apenas querem conversar com os amigos. Há entre estes também os amantes que se camuflam ao cair da noite, exploram seus desejos proibidos.
            Mas outros iguais a mim, simplesmente, andam por ai sem destino certo. Também não gosto de meu emprego. E então, a noite é um bom período ao qual me dou o luxo de proporcionar algumas horas de esquecimento desta vida desgraçada. Olho para algumas mulheres, e até demonstram interesse. Não sei ao certo o que elas veem em alguém como eu. Me desvio cauto. A embriagues, em seu estado avançado, já alterou meus sentidos. E tudo que eu poderia fazer seria chatear com minha conversa de bêbado. Olho o relógio e percebo que a hora de ir para casa se aproxima. Encontro alguns amigos no trajeto. Todos querendo “cair na noite”. Infelizes universitários. Enganam seus pais, mentem que estão se dedicando ao máximo em seus estudos e, à noite, torram a grana que recebem mensalmente para custear suas vidas aqui nesta cidade.
            Chego a minha casa. Com dificuldades tento abrir a porta. Depois de entrar fico refletindo sobre esta que foi mais uma noite e penso no dia que será mais um dia. É estranho! Criamos muitas rotinas tentando fugir daquilo que acreditamos ser uma rotina. O dia virá em algumas horas. Irei para o trabalho. Depois, na certa, tentarei esquecer deles mais uma vez; isso parece não ter fim.

terça-feira, 1 de março de 2011

Nós, os Carniceiros


            Dias a trás, uma das seguidoras deste humilde blog postou em seu MSN o link de um vídeo, uma espécie de mini-documentário, cuja apresentação ilustre é conferida ao ex-beatle Paul MacCartney, que pode ser assistido no endereço http://www.youtube.com/watch?v=FgavacZ_47Q&feature=player_embedded#at=31. Torna-se obrigatório que o leitor assista-o. Darei apenas algumas informações gerais a seu respeito, apenas para gerar uma breve argumentação. Ao assisti-lo, em um primeiro momento, percebe-se que há a nítida militância de vegetarianos ao redor do mundo, ligados a outros movimentos, que lutam para banir o consumo de carne das nossas mesas. Este blogueiro, carniceiro confesso, viu-se impressionado com as imagens e, por tal razão, houve a necessidade de remeter algumas linhas, ainda que chulas, sobre a forma com que nós nos apropriamos das coisas da natureza, entre elas os animais.
            Para além da militância vegetariana; para além da brutalidade exibida pelo ex-beatle em seu documentário, reside a forma predatória e utilitarista que damos aos recursos naturais. Isso passa despercebido pelo telespectador, que é involuntariamente induzido a sentir pena dos bichinhos dos quais nos alimentamos. Há a apelação para o emocional de quem o assiste, contudo, o problema é muito mais amplo; muito mais complexo. O historiador inglês Keith Thomas em um brilhante estudo sobre a relação do homem com o mundo natural na era moderna questionou-se a este respeito.
            Thomas fez um levantamento sobre a forma pela qual os homens se relacionavam com a natureza. Uma das marcantes constatações feitas pelo historiador diz respeito à exclusão do homem da natureza. Ao excluir-se do mundo natural, o homem passou a ver a natureza de uma forma hierárquica, colocando-a abaixo de si. Logo, dentro desta lógica, ela ganhou uma roupagem utilitarista. A legitimação dos homens ocidentais para tal comportamento, na linha explicativa de Thomas, encontra-se nas “sagradas” escrituras da bíblia; mais precisamente no livro de Genesis. Adão e sua mulher Eva, na história bíblica, como todos sabem, comeram do fruto proibido e foram expulsos do paraíso.
            Ao quebrarem o contrato com deus, Adão e Eva abriram mãos da comida farta, da natureza amiga e generosa, onde não era preciso trabalhar para prover o próprio sustento. A expulsão do paraíso significou para o homem sua introdução em mundo cruel e inculto em que era preciso sobreviver. Este lugar é o planeta que nos abriga. Para isso, no entanto, era preciso enfrentar o mundo natural, impor-lhe a vontade de deus que obrigava ao homem a trabalhar, ou seja, transformar a natureza através da técnica. A interpretação feita a partir de Genesis, pelos ingleses da era moderna, conferiu ao mundo natural subserviência e hierarquia, pois a natureza, obrigatoriamente, teria que servir ao homem. A terra serve para o plantio, as plantas para consumo, construção de casas e armas, os animais para alimento transporte e assim por diante. O homem, a partir disso, realizou sua imperiosa atividade de transformação do mundo natural, o qual teria sido feito por deus para servir a vontade humana.
            Ao longo da história, o homem nada mais fez do que isso. Subjulgou as criaturas e excluiu-se da natureza, a ponto de não se reconhecer nela. De caçadores e coletores evoluímos para o agronegócio e para a produção intensiva de animais em cativeiro de modo a alimentar um gigantesco mercado consumidor, conectado ao resto do mundo. A produção, por sua vez, em maior ou menor grau, depende das regras e dos códigos capitalistas de mercado. Transformamos, praticamente, toda a matéria extraída da natureza em mercadoria. São trilhões e trilhões de moléculas de carbono que diariamente abandonam o solo, plantas e animais impulsionando as economias do nosso globo terreno.
            A forma cada vez mais predatória com que o homem passou a tratar o mundo natural provocou na década de 1960, por exemplo, crises na obtensão de matéria-prima e o surgimento de ativistas como os do Green Peace. Hoje, contudo, se fala em desenvolvimento sustentável em que é prevista uma relação de produção harmônica com a natureza. Entretanto, isso é muito recente na história da humanidade se comparado ao que fazemos desde aproximadamente cinco mil anos a trás. Construímos gigantescas cidades, hoje em concreto, e a admiramos – nos orgulhamos delas. Elas são praticamente nosso refúgio, nossa ilusão virtualmente criada, para nos defender do mundo natural, da barbárie dos insetos, dos ventos e das chuvas que sujam nossos corpos e de todo e qualquer animal, que se não serve para comer é, necessariamente, nosso inimigo.
            Carlo Rodrigues Brandão, antropólogo brasileiro, afirma em seu livro Somos as Águas Puras que a forma hierárquica com que olhamos para a natureza é mesma que usamos em nossas relações sociais. Para Brandão, as relações sociais, nada mais são, do que projeções da relação que temos com mundo natural. Se a natureza nos serve e foi criada por deus para isso, então outras pessoas tiveram o mesmo destino na divina providência. Extratos superiores, extratos inferiores, homens que servem a outros homens; tudo isso encarado de forma naturalizada, quase inquestionável no interior das relações humanas. Assim, se não nos vemos entre iguais entre nós mesmos, homo sapiens, como veríamos ou admitiríamos consciência em meros animais que servem, e, teriam sido criados por deus, para alimentar-nos? Não adianta apenas abolir a carne de nossos cardápios como sugere o vídeo de Paul MacCartney. É necessário, antes de tudo, uma nova forma de nos relacionarmos com mundo natural. E isso, pode levar muito, mas muito tempo.
            Nossa vida neste planeta, porém, daqui para frente, se tornará possível apenas se houver, como já vem acontecendo desde a década de 1960, contestação ao modelo de produção das sociedades humanas. Matar animais de maneira aparentemente cruel é apenas parte de uma cadeia complexa de envolvimento que temos com mundo natural e com nós mesmos. Não basta apenas lamentar-se ao ver cenas de carnificio animal, horrorizar-se com sangue e com o sofrimento deles. Matamos-nos diariamente, e segregamos outros biologicamente iguais a nós, mas que, no entanto, por possuírem modos de organização, ideologias e crenças diferentes das nossas acabam sendo empurrados para as margens de nosso mundo social.
                  Enquanto não nos reconhecermos como parte de uma mesma coisa, nós frente ao mundo natural e a nós mesmos, continuaremos comendo xisburguer e churrascos em verdadeiras jornadas gastronômicas aos domingos; e o que é pior, não nos reconheceremos como iguais.
            É o que pensa o humilde autor deste texto.
             

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Memórias de Iñaduvy (parte 3)

 
Ao Sr. General Luís Augusto Sepúlveda Martins de Brito Montinhos de Góis Mascarenhas dos Muitos Alcântaras de Brás e Silva
Comdte. Geral de Todas as Fronteiras Que Houver entre o Ibicuí e o Arapeí e Quantas Mais se Puder ir enfiando os Castelhanos Para o Sul


            Fico feliz de ter sido do agrado do Senhor General a comitiva feita ao Senhor Conde de Vera Cruz pela Fronteira castilhana. Perdoa-me V. Ex. por não ter avisado antes pelo posto recebido das aldeias de Rio Pardo e Cachoeira. Recebi no mês de julho próximo passado deste mesmo ano, do Senhor Comandante de Missões Manoel das Chagas Santos o posto assumido de Capitão Comandante das aldeias do Rio Pardo e Cachoeira. Por ter recebido tal graça devo me desempenhar o cargo com muito gosto e zelo por não ter ninguém que conheça tão bem os assuntos dos índios nestas freguesias.
              Alem de ter o Comando da aldeia de Santa Maria agora conto também com mais estes Povos que já se mostraram favoráveis a nossa causa. Recebi noticias deste Frances que anda a cruzar nossa Província. Dizem os escravos do Alferes André Ribeiro de Cordova que o supradito lembra muito uma Dona por seus modos requintados e delicados. Dizem também que este Senhor pode ser um bombeiro castilhano disfarçado entre nosso povo. Mesmo com tantos boatos o Conde de Vera Cruz reuniu se com este Senhor para tratar sobre os assuntos da Corte e dos luxos da Europa.
                Falo isto por ter ido ao batizado da inocente mais parece um anjinho filha do Senhor Alferes André Ribeiro de Cordova que na ocasião o Senhor Capitão Comandante deste Distrito da Boca do Monte o Sr. José Machado Fagundes de Bittencourt e sua mulher foram os padrinhos em grande festejo em que houve churrasco gordo e aguardente feita nas missões a qual alguns índios de minha Nação guarani dizem ser milagrosa. O supradito Alferes é um bom padrinho para os guaranis da aldeia. Sua boa relação com o Capitão Comandante garante a ele regimentar muitos guerreiros guaranis os quais é de sua inteira estima.
                Há poucos dias houve uma grande confusão nesta aldeia de Santa Maria que interveio a favor dos índios o Capitão Comandante e o Alferes juntando se a estes o Coronel Manuel Carneiro da Silva e Fontoura. O Juiz Ordinário foi impedido de remeter Oficio ao Juiz da Villa da Cachoeira relatando sobre este entrevero entre alguns índios nossos e os soldados de um Capitão do Mato. Eu nada pude fazer sobre este ocorrido por estar-me em diligencia a Fronteira e agora como Capitão destes povos devo ter a sabedoria de bem conduzir tais acontecimentos mesmo eu não contando com a inteligência de Vossa augusta pessoa.
                Agora devo contar com a graça de Nosso Senhor Jesus Christo para por ordem nesta aldeia fazendo diligencia aos olhos das testemunhas recorrendo às leis escritas por nosso Sr. Augusto Príncipe Regente e Perpetuo do Reino Unido de Portugal Brasil e Algarves para restaurar a paz na Capela de Santa Maria.

Deus Guarde Vossa Ex.

Cptam. Cdte. do Distrito de Santa Maria da Boca do Monte.