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segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O Enigma de Kasper Hauser

No ano 1828, num lugar próximo a Nuremberg, hoje na Alemanha, houve um caso misterioso de um jovem que viveu boa parte de sua vida acorrentado em um Porão. Era alimentado por um homem estranho que o castigava. O nome deste jovem era Kasper Hauser que tinha na clausura do porão e nos grilhões das correntes que o aprisionavam o único mundo que conhecia. Kasper não possuía nenhuma habilidade motora e nenhuma capacidade cognitiva desenvolvida; vivia quase em um estado vegetativo e não possuía nenhum tipo de sociabilidade.

            Certo dia, o homem o qual alimentava o jovem acorrentado, resolveu ensinar-lhe a escrever. As únicas coisas que Kasper aprendeu foi o próprio nome. Depois disso, o homem o libertou levando-o até uma vila próxima a Nuremberg onde o abandonou em uma praça. O fato chamou atenção dos moradores que, de início, acharam que Kasper pertencia à nobreza. Depois de um tempo, dois anos mais ou menos, Kasper havia ampliado seu vocabulário e dominado maior precisão motora. Com ajuda dos habitantes do lugar, aprendeu a fazer tricô, tocar piano e algumas técnicas de jardinagem.

            Esta história é narrada no filme cujo título em português é O Enigma de Kasper Hauser, de 1974, dirigido por Werner Herzog, baseado em uma história real. Para quem não viu o filme, vale a dica, é bom ver. Mas não estou simplesmente propagandeado-o. O que tenho para mostrar aqui é uma atividade que foi desenvolvida em uma das disciplinas do curso de graduação em história, o qual cursei entre os anos de 2005-2010. A atividade me chamou a atenção porque a professora solicitou que cada um de nós escrevesse um texto, tomando a história de Kasper Hauser como base, abordando uma situação semelhante, em que nós alunos, seriamos responsáveis pela socialização de um sujeito nas mesmas condições de Kasper.

            Isso, para mim, suscitou pensar na educação formal e em sua estreita relação com a democracia. Enquanto educadores, o que ensinamos? E para que ensinamos? A partir destas perguntas, foi construído o texto que segue abaixo, entregue a disciplina, e que compartilho neste blog com o propósito de refletir, não apenas no papel do educador, mas também no tempo que forma este educador e nos fragmentos de coisas as quais ele julga necessário ao aprendizado de seus educandos. Vamos ao texto:



Democracia: um uniforme?

Podemos dizer que muitas escolas, não só no Brasil, funcionam como “porões”. Nelas, estão escondidos e, aprisionados, muitos Kasper Hauser que, na tentativa de se incluir, boa parte das vezes, acabam sendo excluídos; principalmente aqueles que contam com poucos recursos materiais e econômicos. O educador, no entanto, revestido da mais pura preocupação (nem todos é verdade) de incluir um aluno à sociedade acaba o uniformizando. Leva-se a ele a “civilização”, como a forma mais avançada da organização humana. Por muitos séculos, antes de nós, muitas sociedades chocaram-se umas contra as outras para, enfim, definirem por meio das armas, qual seria o modelo civilizador mais apropriado.

Poderíamos, aqui, nos reportar aos reinos e impérios da antiguidade, dos egípcios até Alexandre O Grande, dos romanos até os conquistadores europeus de fins da Idade Média. Poderíamos ainda falar dos grandes impérios ameríndios, ou dos Estados expansionistas da Era moderna. Todos estes levavam modelos, carregavam em si “propostas” de organização sendo colocadas e “apresentadas” entre a alteridade e a negociação. Esboçavam um conjunto de regras sociais que diziam aos homens, de uma forma ou de outra, como agir e como pensar, para onde seguir, para onde não ir e, ao longo dos séculos, esta forma de organização, desigual e segregacionista, foi reproduzida quase que de modo inconsciente por nossos antepassados.

A humanidade produziu e, presenciou, uma guerra em escala global durante os anos 1914-1918, em que se disputava qual seria a “fórmula” mais convincente de civilização. Ela, no entanto, paradoxalmente, deu lugar à autofagia humana e, durante o século XX, a obscuridade das ações do homem ganhou outros nomes, como socialismo, capitalismo, neoliberalismo e outros tantos “ismos”; todos estes ditando regras, carregando em si modelos perversos de segregação. A uniformização, aqui, entendida como um conjunto de regras que, apresentam de modo um tanto persuasivo idéia de civilidade, é colocada nas escolas de forma naturalizada. Muitos valores, artifício da criação humana, ao longo dos séculos, como ler e escrever, por exemplo, não são contextualizados e, assim, muitos alunos não percebem sua importância.

Neste sentido, todos estes valores, que nada mais são do que construções sociais – artifícios da genialidade humana – funcionam como o estabelecimento de padrões. Hoje, por exemplo, todos os homens devem saber ler, escrever, trabalhar, consumir e se possível ter filhos. Esta organização é colocada como padrão atual de nosso mundo e, com isso, tentamos “impor” esta construção nas escolas. Mesmo que esta ideia pareça hegemônica e impossível de ser driblada, podemos entender os homens que optaram em viver fora deste padrão (marginais) como os Kasper Hauser do século XXI.

            No entanto, esta opção é condicionada, em maior ou menor grau, pelos “calabouços pedagógicos” que são algumas escolas. Dizemos aos alunos o que eles devem ser – na verdade é o que a sociedade espera deles –, mas não os ouvimos. Esquecemos-nos de perguntar o que eles querem ser. Tampouco levamos em conta suas habilidades que fazem parte de suas identidades e, portanto, diz o que eles são. Conformam o modo pelo qual eles dão sentido ao mundo em que vivem; enfim, são suas representações sociais. Não trabalhamos com as diferenças e, sim, com padronização que representa tudo o que a sociedade espera de uma pessoa. Quando elas não correspondem à uniformização, dizemos que estas pessoas (alunos) são desqualificadas.

            Assim, servem de justificativa para a reprovação e, possivelmente, estes reprovados partam para modos alternativos de vida (criminalidade). Talvez até encontrem algum significado para suas vidas, que foram desprezadas pelos modelos formais de socialização. A Educação, dentro do processo escolar, trata de maneira homogênea, tanto alunos quanto professores, sob pretexto de democracia. O problema que pode ser levantado em torno disso, em minha opinião, é a inclusão em que, ao mesmo tempo, pode ser exclusão.

              Podemos ensinar tudo aquilo o que consideramos essencial e, também, o que os conteúdos programáticos recomendam, mas se não levarmos em conta o que os alunos sabem, e o que querem e, de acordo com suas habilidades, estaremos os uniformizando. Mas a pergunta é: será que temos como fugir disso? Será que devemos criar alternativas? Em relação ao filme Kasper Hauser, protagonista da narrativa cinematográfica, ele aprendeu tudo o que seus mestres acreditavam que seria indispensável para sua vida.

            De maneira análoga, um professor faz o mesmo. A diferença é que cada tempo produz um tipo de homem, e cada homem produz um tipo de conhecimento. Conhecimento que se acumulam e que são destilados às gerações subsequentes. Na antiguidade clássica, grosso modo, estes conhecimentos dividiam-se em saber cultivar o solo e obter destreza nas artes da guerra; na era medieval; temer a deus e cumprir juramento a reis e outros senhores feudais. Já na era moderna, as obrigações giravam em torno do respeito às leis e aos propósitos do Estado, e hoje?

            Dentro deste universo multipolar contemporâneo, encontramos muitas formas de ensinar e de aprender, sendo praticamente impossível apontar uma forma mais errada ou mais correta de se fazer isso. Levando isto em consideração, como se ensinaria hoje uma pessoa nas mesmas condições de Kasper? Poderíamos pensar que seria mais fácil do que no século XIX, ou do que em qualquer outra época. Kasper aprendeu a tocar piano. Era capaz de executar músicas de grandes compositores eruditos como, por exemplo, Beethoven. Naturalmente, tocar piano não é uma atividade indispensável à sobrevivência humana, mas no século XIX, tinha muita importância – mostrava refinamento.

            Um humano só aprende a ser humano, obviamente, com outro humano. Um humano só a prende a não errar vendo outro humano errando. Somos nossos mestres, e aprendizes, nossos salvadores e nossos piores inimigos. Somos nossos matadores e nossas próprias vítimas; nossos mártires e heróis. Considero isso indispensável em qualquer aprendizado e, portanto, isso não faltaria nas lições de um Kasper contemporâneo. Não há como não se frustrar, nem como não se sentir discriminado, porque isso também faz parte do aprendizado.

Inevitavelmente, eu reproduziria os valores e normativas sociais da minha época, com todas as falhas e acertos, mas quem julgaria isso seria ele. Não esperaria que ele se tornasse igual a mim, tampouco menor ou maior, mas que fosse Kasper. Mostraria o possível, os caminhos já trilhados, mas quem os escolheria seria ele próprio. Mesmo que isso possa representar respeito à suas escolhas, não significa que seja o mais correto, porque o que aprendi advém de uma experiência que não é a sua e, nesse complexo envolvimento, além do trocadilho, significa, de certo ponto, autoritarismo.

            No entanto, a experimentação de Kasper, seria diferente da minha, porque somos naturalmente diferentes. Por tal razão, considero problemática a questão da uniformização. Contudo, os limites são necessários, entre eles, e o mais importante, o respeito à vida, não só dos homens, mas por tudo que é vivo. Não se trata de um discurso romântico, clichê de candidatas à miss universo, cujo significado reside no “amor a natureza”, mas de uma questão muito prática e até funcionalista – precisamos dela. Nossa vida neste planeta depende de nossas ações e Kasper teria que aprender isso de uma forma ou de outra.

            Ao reproduzir meus conhecimentos à Kasper estaria lhe entregando conhecimentos de pelo menos cinco mil anos, acumulados, destilados e transformados ao longo das gerações. Conhecimentos que acompanham a humanidade e fazem dela o que ela é e, ainda, ajudará no que ela ainda poderá ser. Mesmo se tratando de uma tosca cidade do extremo sul do Brasil, como Santa Maria (RS), Kasper receberia estes conhecimentos que são comuns a todos, ainda que muitos o desprezem por achar que a história, enquanto ciência, não é importante, e que nada tem a acrescentar em suas vidas.

            E se Kasper Hauser assim fizesse, diria a ele que mesmo não reconhecendo a importância dos conhecimentos históricos, acumulados ao longo dos tempos, diria que a história é a lei geral dos homens, da qual não podemos escapar. Mesmo que ele dissesse que nada tem com isso, diria a ele que sua negligência social estaria contribuindo para deixar as coisas como estão, demonstrando, assim, sua parcela na constituição no todo social. Diria ainda que ele pertence a uma época, e que seria lembrado como alguém que viveu nela, talvez não como o Kasper, quem sabe como alguém anônimo; uma experiência única diluída em uma grande ordem coletiva.

            Kasper teria que aprender muitas coisas por si mesmo. O máximo que eu poderia fazer seria levar as coisas até ele, mas quem diria o que serve e o que não serve seria ele mesmo. Quando uniformizamos o mundo, não damos chance para que se vejam nossas falias que se naturalizaram; cristalizaram, e que nos cegam. Mas se deixarmos que outros as vejam, estaremos contribuindo para que aconteçam mudanças. Kasper poderia ser um senador, deputado, presidente, professor ou um ativista de qualquer movimento, se perceber o que há de errado em seu mundo.

            Mas, também, poderia ser um assalariado, pacato, modal, apático e aparentemente alienado das grandes decisões sociais, contudo, eu diria que nem mesmo isso invalidaria sua existência. Para quem ensina torna-se difícil lidar com as diferenças e, assim, o educador se torna egocêntrico – onipotente. Ele acha que sua visão de mundo é a mais correta, e por tal razão, se tornaria doloroso ver seus aprendizes se tornarem homens explorados por outros homens, assalariados ou ainda exclusos da socialização formal. Mas isso, no entanto, da perspectiva dos aprendizes pode ter outro significado.

            Poderia até existir debates para que houvesse uma mudança de pensamento, mas aí, novamente, se estaria uniformizando. Kasper teria que escolher, entre vários caminhos, um que lhe garantisse uma certeza frente a outras tantas incertezas. Dentro desta complexa trama, eu apresentaria a Kasper os caminhos que eu já percorri, e os resultados obtidos  e nada mais. Mostraria o horizonte, mas quem escolheria a direção seria Kasper. Não esperaria que ele escolhesse qualquer caminho já trilhado, tampouco o forçaria a escolher um inédito. Isso teria que ser pensado por ele mesmo, de acordo com suas frustrações e com tudo que lhe foi possível aprender ao longo da socialização de esperanças e incertezas.

Dentro da conjuntura atual de nosso mundo, ainda que possa significar uma generalização, de certo ponto leviana, não penso que estamos aptos, ainda, em lidar com as diferenças, mesmo que já existam debates imemoráveis a este respeito. Ainda tentamos uniformizar tudo e todos, da mesma forma como aconteceu com Kasper do século XIX. Suas dificuldades motoras impediam que ele dissesse o que realmente queria, mas depois de aprender as regras e costumes de sua época, foi capaz de dizer, e mostrar as falhas e erros de seu tempo. E isso resumiria o que eu faria com o Kasper de nosso tempo – eu o ajudaria e se tornar um observador de seu mundo. No entanto, isso não significa que tudo o que está sendo descrito aqui seja o mais correto.

Embora esta pretensão seja também uniformizadora e autoritária, acredito que é muito mais complexo do que simplesmente dizer o que é certo ou o que é errado, dentro de um conjunto de regras lobotomizadas. Isso nada mais é do que dar a chance de se deixar escolher em que mundo se quer viver, porque talvez Kasper Hauser não escolhesse este mundo; nosso mundo, nosso modo de vida. Talvez nosso “uniforme” não servisse para ele, mas é difícil saber. Ele teria de ser seu próprio alfaiate e fazer seus ajustes, arrumando sua costura com as próprias mãos.

Assim, encerro esta indagação dizendo que nem eu mesmo gosto de vestir este uniforme. Contudo, não vestí-lo me tornaria invisível neste mundo no qual já ingressei, e no qual já fui ensinado e normatizado. Na verdade todos nós somos como Kasper. Algum dia, recebemos o uniforme de nosso tempo e nem sempre ele serve porque é fabricado em série, e vem em tamanho único. Para aqueles que decidem não usá-lo, resta a invisibilidade e, consequentemente, reside aí a justificativa para a segregação de nossa matrix perfeita e “harmoniosa”.