Páginas

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Memórias de Iñaduvy (parte 2)

Ao Senhor General das Sepulvedas e de todos os Alcântaras. Senhor Perpétuo; Ilustríssimo de todos os Povos, Vilas, Capelas, Freguesias e demais lugares em que haver a oeste da Vila do Rio Pardo, até Corrientes e do Povo de São Nicolau até Yapeyu.

            Sr. P. das Fronteiras do oeste desta Capitania venho a informar V.S. que a escolta ao Conde de Vera Cruz (português Matheus) foi muito bem sucedida. Como V. S. havia ordenado, o Tenente Coronel Jonas Vargas veio diretamente da Corte para ajudar na expedição. Sendo o Senhor Tenente Coronel, homem de sua inteira confiança, prontamente atendeu ao seu chamado, vindo diretamente a esta Capela Distrito de Santa Maria, partindo com o Capitão de Ordenanças, Castilhano Liandro, e demais soldados para a Vila do Rio Pardo, onde estava o Conde de Vera Cruz com sua comitiva vinda de Porto Alegre.
            Juntei minha tropa aos demais expedicionários, rumo ao Povo de São Borja, onde sou Capitão Comandante e Corregedor. Lá também temos a estância dos Fontella, valorosos povoadores de nossos domínios, e pais de nosso Capitão de Ordenanças, onde podemos contar como posto avançado nesta Fronteira. Chegando lá, foi preciso afugentar alguns castilhanos que andavam a roubar o gado de nossa gente. Alguns índios que andam ainda fora das graças de Nosso Senhor Jesus, ajudavam estes malditos Castilhanos. Corremos atrás deles até Corrientes. No retorno, paramos na poperia do guarani conhecido na região como Ignacio do Uruguai. Este índio serve nos de mantimentos para nossas expedições e também monopoliza os negócios na praça comercial do Rio Uruguai, com seus alfajores e bons vinhos, tão finos quanto aqueles que vem de Portugal.
            O Conde de Vera Cruz, disse não confiar nos guaranis destes Povos, mas disse a ele que se quiser fixar sua sesmaria na Capela do Alegrete, deverá bem tratar esta gente, ou então será rechaçado destas bandas. O supradito, não conhece bem os Povos da Fronteira, tampouco sua farta fauna e flora. Por ser um fidalgo, formado nas letras e na filosofia, desconhece a vida no mundo natural. O Conde, assustava se de muitas criaturas de nossa fauna. No caminho até o passo de Uruguaiana, o supradito confundiu uma capivara, com as ovelhas, as quais, está acostumado a ver em Portugal. Ele demorou a ser convencido que aquilo que acabara de ver era uma capivara.
            Logo em seguida, confundiu um quero-quero com uma perdiz. O Capitão de Ordenanças ficou muito impaciente por isso e foi logo acomodado pelos soldados do Tenente Coronel. O Conde ficou impressionado com o grande número de bugres que existem na fronteira. Ele diz que o Brasil não pode ser povoado por esta gente e, por este motivo, acho que ele deverá se apresentar a V. E. para falar lhe. Seu interesse é trazer para a Fronteira gente branca da Europa para povoar e trabalhar nestas incultas terras. Com todo o respeito e graça que estimo por V. E. digo que o Conde está errado em pensar tais coisas porque os europeus não conhecem as artes da guerra e, portanto, serão impedidos de defender esta Fronteira.
            Os camponeses da Europa serão duramente castigados pelos traiçoeiros castilhanos, como muito bem lembrou nosso Capitão de Ordenanças. O próprio tenente Coronel desaprovou a ideia do Conde, dizendo lhe que não conhece a Fronteira em coisa alguma. Amanhecendo o dia levamos o Conde até o Vigário. O supradito confesso se e depois conversaram sobre a construção de uma Capela e de um oratório privado. Tratou também de batizar seus escravos e realizar alguns casamentos entre eles. Sua escrava de nome Felizarda Moçambique, V. E. esta de mancebo com o escravo do Conde que chamam de Manoel Piqueno. Este por sinal é bom campeiro e nos acompanhou durante toda a expedição.
            Notei um comportamento estranho no Capitão de Ordenanças. Por ser o supradito, natural do Povo de São Borja, e conhecer todas as artes de enganar o inimigo e até a nós mesmos, quanto mais se aproximava do Uruguai, mais aparecia lhe ideias pervertidas e da pior espécie; heresias e profanações, mas, entretanto, logo em seguida percebi que se tratava de um Castilhano. Por andar entre nós e nos servir a muito tempo, tinha esquecido de sua conduta desregrada e desgraça. Sua alma foi salva pelas graças de nossa religião e pelas mãos de V. E. dando lhe trabalho em vossas terras.
            O Tenente Coronel Jonas Vargas, passou a viajem inteira evocando o nome de uma entidade desconhecida, a qual, dizia ser Bourdieu. Não sei do que se trata, por isso fui impedido de o reprender. Por alguns momentos o supradito desconheceu minha autoridade nesta Fronteira, fato que foi corrigido depois que disse que era o Capitão Comandante das aldeias do Rio Pardo, Cachoeira e Santa Maria, e Senhor Corregedor do Povo de São Borja. Perguntei a ele em quantas batalhas esteve e prontamente me responde que matou muitos castilhanos e muitos índios infiéis que acompanham Artigas.
            O Conde de Vera Cruz impressionou se com as histórias do Tenente Coronel, dizendo que jamais participou de batalha alguma. O Capitão de Ordenanças largou se a rir por este motivo dizendo em voz alta que o Conde era um fidalguinho criado em castelo, mimadinho pelas âmas de leite, e que não conhecia nada das coisas deste mundo. Logo tive que o reprende lo puxando de meu facão. Disse a ele para não zombar mais do Conde, o qual era seu senhor na expedição. Ao retornar da Fronteira garantimos todos os soldados com vida e inteiros apesar de ter enfrentado batalhas duras no Rio Uruguai.
            Garantimos ao Conde sucesso em sua empresa a Fronteira. Mesmo o supradito não saber a diferença entre uma capivara e uma ovelha, digo a V. E. que o Sr. Conde de Vera Cruz será um valoroso povoador de nossa Fronteira. O Tenente-Coronel também foi bem sucedido garantindo bons cavalos em troca de alguns escravos de suas charqueadas na Vila de Pelotas. Assim, termino este ofício dizendo ao Sr. General. que cumpri mais uma missão nesta fronteira e espero por outras que farei com agraça de Nosso Senhor Jesus Cristo.

            Deus guarde a Vossa Excelência.

Capela de Santa Maria da Boca do Monte 18 de fevereiro de 1817.

        Capitão Comandante do Distrito de Santa Maria,  Pedro Inãduvy.                       

2 comentários:

  1. Ao Exmo. Sr. Índio Iñanduvy
    Cptam. Cdte. e Corregedor do Povo de São Borja e aldeias do Rio Pardo Cachoeira e Santa Maria

    Foi com muita satisfação que recebi seu ofício no próximo-passado dia de hontem, dando conta da faustosa expedição que encetou.
    Naquela ocasião, estava eu ainda na diligência de uma viagem que me tocou fazer à capital da Província. Ocorre que Minha Dama fora convidada a um Sarau pelas senhoras baronesas e visondessas residentes naquela augusta vila. Como é sabido, não cabe a qualquer dama recusar convite feito pelas decanas de nossa sociedade. Em verdade, não se tratava de bailados, mas de tertúlia literária onde foi apresentado um entendido em medicinas que chegou à província trazendo planos de saneamento do logradouro público de nossa capital. Sabedoras que minha Dama é dada a leituras e já promoveu diletâncias acerca do meio natural de nossa Província, bem como da saúde de seus habitantes, as notáveis Senhouras não tardaram a convidar-lhe para o animado colóquio.
    Ficamos hospedados em belo sobrado de vinte cômodos, providenciado às expensas do senhor Governador da Capitania, o Conde da Figueira. Tivemos à nossa disposição lençóis os mais brancos de tecido fino e urinóis da mais requintada loiça de faianças de Holanda. Contudo, eu mesmo senti-me muito estranhado quando o Senhor Conde me apresentou a um francês, de nome Santilér, que viaja pelo Brasil a caçar passarinhos, desenhar macegas e interessa-se por demais por todas as cousas que não tem nenhum cabimento. Indagava de tudo. Perguntou sobre a Fronteira e diz que quer conhecê-la (valha-me Deus), sobre Artigas e sobre a guerra. Meu único divertimento foi encher-lhe os ouvidos de mentiras as mais deparatadas, movido, em parte, por meu desaprovo de sua pessoa, em outra parte pelos cális de espírito que vinha sorvendo desde o início do jantar.
    Disse-lhe que Artigas era um homem malo, que dava de comer os inimigos aos seus cachorros. Disse-lhe que, no território de Missões, não há negros por serem muitos os índios que nos querem servir. Contei, também, que o povo desta capitania é tão destro nas lides do campo, que bastam dous homens para castrar 400 touros em uma tarde. Sendo que um derruba o bicho pelas aspas e os põem em fila, e o outro vai passando-lhes o fio da faca. A cada descabimento que eu falava, ele respondia com ohhs e uuhss, anotando tudo em uma caderneta.
    Para cúmulo de meus tormentos, no outro dia, esse homenzinho resolveu nos acompanhar em um passeio de barco pela Laguna. Trouxe para bordo, uma comitiva de dous negros e um bugre, este muito grosseiro e a quem o dito francês tentava agradar de todas as maneiras. Soprava o mais gelado dos ventos e confesso que somente pude agüentar essa expedição por desejo de fazer as vontades de minha Dama, a quem não me furto de cobrir de mimos.
    CONTINUA...

    ResponderExcluir
  2. Foi quando cheguei de retorno à minha estância que recebi a visita do Senhor Conde de Vera Cruz, o português Matheos, dando-me sua versão dos fatos narrados por V. Exa. em seu ofício sobre a expedição à Fronteira. Aproveito para tranqüiliza-lo dizendo que não dei ouvidos à conversa do Conde porque sei que procura disfarçar seu desconhecimento das cousas do campo. Peço-lhe paciência para com ele, pois, mesmo com todo esse desconhecimento, é o Conde homem de inteligência e grande serviço poderá prestar ao instalar-se nesta Fronteira, com seus bugres e suas negrarias. Além disso, é pessoa muito bem relacionada e estimado pelos bispos dos Povos, assim como é bem recebido nos salões os mais esquivos, como os do Doutor da Capela de Alegrete, que inclusive anda elogiando os modos e o porte do nosso amigo. “Um mocetão de grande garbo!”, dizem que foi seu comentário sobre a visita do Conde.
    O Tenente-Coronel Jonas Vargas é, de fato, homem de minha inteira confiança e tem lá seus interesses na Fronteira, assim como na Corte e na sua charqueada em Pelotas. Assim como o senhor Conde, ele também era homem citadino, de poucas vivências rurais, e alguns vexames também já patrocinou em outros tempos nos campos da Uruguaiana, mas posso garantir que se tornou vaqueano dessa Fronteira ao partir em algumas expedições em minhas tropas e travou convivência na Boca do Monte, onde, se diz, o povo tem por ele muita estima.
    As cousas que me conta do Castilhano Liandro não me supreendem, dada a falta de fé, tão típica da sua raça. É moço desconfiado, mas que vem prestando os mais valorosos serviços por ser quase que um elemento natural de dentro dessas paisagens. Dizem que passa o rio e não se molha. Vejo em seu negócio que traficar negros para as Missões um grande futuro, de modos que há que se ter para com ele também alguma tolerância, mas sem relaxar-lhe a disciplina. É o que vos recomendo.
    Assim sendo, fico por aqui eu muito grato em receber vosso ofício dando conta de tudo o mais e logo vos escrevo sobre o caso dos índios vossos comandados e também para tomar ciência dos movimentos de Artigas.
    Assim me despeço.
    Seu Comandante e amigo,
    General Luís Augusto Sepúlveda Martins de Brito Montinhos de Góis Mascarenhas dos Muitos Alcântaras de Brás e Silva
    Comdte. Geral de Todas as Fronteiras Que Houverem entre o Ibicuí e o Arapeí e Quantas Mais se Puder ir enfiando os Castelhanos Para o Sul até caírem no Rio da Prata que de lá Nunca Mais Saiam com a Graça de Deus Nosso Senhor.

    ResponderExcluir