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terça-feira, 24 de maio de 2011

Bem Vindos a Selva: mitologia e história

Bem Vindo à Selva
            Em 1987, a banda estadunidense Guns in Roses, lançou o álbum Appetite for Destruction, que viria a ser um dos mais vendidos da história do rock. A primeira faixa, intitulada Welcome to the Jungle (tradução: bem vinda à selva), é uma narrativa que se refere à cidade, metaforicamente tratada como selva. A descrição é temerosa, sombria e, por vezes, de repúdio a ela. Trata da história de uma mulher, anônima e de lugar indefinido, recém-chegada a uma grande cidade. O narrador da história é o seu guia. Ele a apresenta a selva; a selva de pedra. Lugar de perdições e prazeres mundanos, mas que, no entanto, só serão adquiridos se comprados; eis a dificuldade.
            Para conseguir dinheiro, todavia, é preciso ir a “caça”. A caça, por sua vez, sugere a interação da mulher recém-chegada com a selva; um mundo inculto, insalubre, desconhecido e cheio de armadilhas. A selva, cenário desta narrativa, figura como lugar em que a mulher personagem passa a ser desafiada. A relação cidade-selva se dá neste sentido; local que desafia as habilidades humanas e que exige, nesta interação, o domínio humano sobre a selva. Contudo, a analogia feita pela narrativa expressa certo paradoxo. De um lado a selva com seus adereços primitivos e de outro a cidade. Mas o que seria a cidade?
            Poderíamos nos deter em uma análise etimológica destes dois termos, contudo, aqui foi feita a opção por uma abordagem sociocultural em torno destes conceitos. A palavra cidade vem do latim civita, que significa reunião de cidadãos. Enquanto que selva, do latim silva, significa mato. Ao longo da história da humanidade, as cidades foram percebidas como a materialização da evolução humana; símbolo da civilização. Contudo, nem todos os povos edificaram cidades e, a estes, cunhou-se expressões como bárbaros, silvícolas, povos atrasados, incultos; índios.
            Estes, por sua vez, viviam aos milhões pelos territórios que viriam a serem chamados de América pelos europeus. Estas expressões confundem-se. Até tornaram-se sinônimos para se referir as populações que viveram fora da Confederação Astéca ou do grande Império Ínca, por exemplo. No Brasil, espaço ocupado por inúmeras parcialidades indígenas do tronco linguístico tupi-guarani até o século XVI, por exemplo, não possuíam grandes centros urbanos e, por esta razão, muitos estudiosos interpretaram como atraso em comparação aos íncas maias e astécas. A partir deste quadro, podemos iniciar um breve exercício teórico. Seriam estas populações realmente atrasadas? O que realmente nos difere deles?
            No caso específico das populações guaranis, que passaram por inúmeros sobressaltos após o contato com os europeus – encomienda, compartimiento, cristianização, extermínio e perda de territórios –, cada fenômeno descrito rendeu uma vasta literatura, principalmente durante o período missional jesuítico (séculos XVII-XVIII). As pesquisas etnográficas mostram que os padres jesuítas viam os guaranis como bárbaros não civilizados. Não reconheciam neles capacidade alguma de organização social, nem mesmo a possibilidade de possuírem um sistema de crenças bem definidos. Afinal, não possuíam imagens, ídolos ou livros sagrados; logo, não possuíam religião.
            No entanto, os antropólogos questionaram-se a este respeito em virtude destes mesmos jesuítas, ao mesmo tempo, terem admitido ter sido muito difícil ministrar a catequese entre os guaranis. Ora, se não havia uma religião definida, porque foi difícil a catequese? Hoje a antropologia reconhece, por meio de estudos etnológicos, que a própria organização social dos guaranis compõe uma religião. Há entre os povos guaranis a reiteração, em diferentes pontos do Brasil, do chamado mito da terra sem máles. Os antropólogos já o identificaram também nos textos jesuíticos e entre os guaranis de hoje. Para os guaranis, de um modo geral, a terra sem máles é o paraíso. Lugar onde não há dor, nem sofrimento. Onde os alimentos crescem sem ter de plantá-los e, a caça, vem morta aos pés dos caçadores.
            Para os guaranis, considerados por muitos como povo errante, a terra sem máles, no entanto, é um lugar físico e que fica a leste, sempre em direção ao mar. Diz o mito guarani que cansado da maldade dos homens, Nhanderú, deus supremo dos guaranis, resolveu destruir a terra em um grande fogo. O ser supremo avisou Guiraypoti, o grande pajé, e ordenou que ele dançasse e fizesse rituais por toda uma noite. Ao final, Nhanderú retirou um dos esteios da terra e, então, o fogo alastrou-se. Guiraypoti, com isso, juntou sua família e partiu para leste, em direção ao mar. Depois de ter lá chegado, construiu uma casa e continuou com as danças rituais. Mas o fogo chegou e Guiraypoti teve que subir no telhado da casa com sua família.
            A água do mar começou a subir para apagar o fogo da terra e o grande pajé evocou o canto sagrado dos guaranis. Foi então que a casa começou a subir em direção aos céus. Para os guaranis, o lugar para onde foi Guiraypoti e sua família é a terra sem máles. É notório que a história dos guaranis é marcada por grandes migrações rumo ao leste. A busca pela terra sem máles, ainda que não tenha fornecido provas empíricas aos historiadores, para os guaranis é uma jornada rumo à elevação do espírito; uma busca pela eternidade. Para eles, os guaranis de hoje, os padres jesuítas não eram juruás (homens brancos), eram guaranis, grandes pajés (Karaís), que alcançaram a terra sem máles, portanto, foram homens que alcançaram a eternidade.
            A prova disso, para eles, são as ruínas das antigas missões. As pedras, para os guaranis, são os ossos da Terra, símbolos da eternidade. Eles entendem que os Karaís ou Nhanderú Mirins (padres jesuítas) deixaram as ruínas para indicar o caminho da terra sem máles. Contudo, mesmo que na escatologia guarani, como em muitas outras, encontre-se referencias a um lugar transcendental, o mundo físico é interpretado de modo sagrado. A própria origem de Nhanderú conta com elementos da natureza, como podemos perceber pelo trecho que segue:

Nosso pai, o último nosso pai, o primeiro, fez com que seu próprio corpo surgisse da noite originária [...] Divino espelho do saber das coisas [...] No cimo da cabeça divina as flores, entre as plumas que o coroam, são as gotas de orvalho. Entre as flores, entre as plumas da coroa divina o pássaro originário, Maino, o colibri, esvoaça, adeja. Nosso pai primeiro, seu corpo divino ele desdobra em seu próprio desdobramento, no coração do vento originário (A fala sagrada dos guaranis; apud, CLASTRES, 1990, p. 24).
        
            Até aqui, já poderíamos traçar algumas considerações em torno de nosso exercício. Para os guaranis do passado e para os de hoje, a natureza é sagrada por que ela é parte do ser supremo. Ao contrário, para nós a natureza não representa nenhum aspecto neste sentido. Assim chegamos a uma grande diferença entre nós, humanos herdeiros de séculos de cultura destilada aos moldes judaico-cristãos, construtores de grandes cidades e criadores de grandes maravilhas tecnológicas e eles – povos atrasados, incultos e incapazes de elaborar coisas desse tipo; enfim, incivilizados. Poderíamos até parar por aqui. Afinal, não seria nada difícil encontrar diferenças entre índios e não índios. Contudo, nosso exercício continua.
            Para isso, é preciso reportar-se aos estudos do historiador Keith Thomas (1983) acerca das relações do homem moderno com a natureza; o mundo natural. Thomas investigou nosso mito de origem expresso no livro de Gênesis. Segundo ele, ao contrário do que muitos pensam, as preocupações da humanidade em torno da natureza são mais recentes do que se imagina. Vamos ao mito. Em Gênesis encontra-se a narrativa que conta a origem do homem. Os primeiros humanos, Adão e Eva – como todos sabem –, viviam no paraíso e foram expulsos de lá, logo após terem comido o fruto proibido.
            Isso significou para o homem a quebra do contrato com Deus que estipulava a Adão e Eva o seguimento incondicional de seus desígnios. Como punição, Deus enviou-os a Terra onde teriam que prover a sua sobrevivência. É neste momento que a jornada humana sobre a Terra se inicia. Uma história de dominação sobre a natureza legitimada pelas sagradas escrituras do Antigo Testamento. Como diz em Gênesis:

Temam e tremam em vossa presença todos os animais da terra, todas as aves do céu e tudo o que tem vida e movimento na terra.  Em vossas mãos pus todos os peixes do mar. Sustentai-vos de tudo que tem vida e movimento (Gênesis IX, 2-3; apud: Thomas, 2010, p. 23).

            Seguindo o raciocínio de Thomas, chegaremos à conclusão de que o mundo natural assume um papel utilitarista para a humanidade. A natureza e todos os seus recursos foram designadas por Deus para o sustento dos homens e, para isso, no entanto, era necessário interagir com o mundo natural. Era preciso transformar o inculto em culto: desbravar as selvas e transformá-las em áreas cultiváveis; criar animais para alimentar-se e assim por diante. Ao dominar a natureza, ao mesmo tempo, o homem judaico-cristão excluiu-se do mundo natural, vindo, então, a criar o seu próprio mundo em oposição à natureza, ou seja, as cidades. Genericamente, nós ocidentais não nos reconhecemos como partes integrantes da natureza e nosso mito de origem representa muito bem nosso papel no meio ambiente.
            A relação cidade-selva apresentada na música da banda Guns in Roses, por exemplo, segue esta premissa. Espera-se que a cidade seja o que foi feita para ser; o artifício humano e seu isolamento do mundo natural, mesmo que ilusório. Por outro lado, na letra da música, encontra-se a analogia da cidade como palco de comportamentos primitivos, nocivos e distantes da civilização, expressos nos “devaneios” descritos. Para o antropólogo Carlos Rodrigues Brandão (1994) os homens ocidentais, neste isolamento, colocaram a natureza em uma posição hierarquizada em relação a eles e, tudo o que existir no mundo natural sem ter passado pela transformação da técnica humana, é colocado no plano inferior do primitismo.
            Para os guaranis, no entanto, o mundo natural, parte integrante do ser supremo Nhanderú, figura como sujeito e não coisa. A água, as plantas, os animais e os homens são parte de um mesmo plano. Não há hierarquias nesta relação. Os deuses do panteão guarani vivem nas florestas, nas pedras, nos rios, nas noites, nas tempestades e no orvalho das manhãs. O mundo natural constitui uma parte integrante de uma complexa rede de trocas entre homens e natureza. Tudo isso é formado entre a socialização dos significados que o mundo natural adquire para os guaranis. Os mitos, os rituais e tudo que pode caracterizar uma etnologia guarani, nada mais são do que as formas pelas quais eles se relacionam com a natureza.
            Aqui, chegamos a mais uma parte de nosso exercício; a comparação entre duas formas bem distintas de relação com a natureza. Brandão, em estudo sobre os discursos e reivindicações dos povos indígenas na ONU, na década de 1980, fez interessantes distinções a respeito do modo indígena de pensar o mundo e o modo “branco” ocidental europeu (do qual somos herdeiros). Para Brandão existem sistemas de pensamento bem distintos. Eles se organizam a partir da relação dos homens com o meio ambiente, ou seja, o mundo natural. Para Brandão, os indígenas em relação oposta aos “brancos” ocidentais, percebem o mundo natural em uma permanente relação de trocas, caracterizando o que ele chamou de dívida e dádiva.
            A terra para os indígenas, por exemplo, fornece os alimentos e os meios materiais básicos para a sobrevivência. Nela enterram-se os mortos, para que um dia retornem a vida, completando um ciclo de vida e morte. Nesta relação de trocas, os homens fazem parte do mundo natural e, as diferentes formas de se relacionar com ele, caracteriza o que chamamos de cultura. Essas relações com o mundo natural são codificadas em símbolos, como danças, mitos, rituais, desenhos e, sobretudo, nas relações entre os homens. Tudo faz parte do mundo em uma relação entre iguais, por haver troca constante entre eles.
            A natureza figura como sujeito, diferentemente dos “brancos” ocidentais, que pertencendo a outro sistema de pensamento, reificam o mundo natural, não havendo, portanto, relação de trocas entre homem e natureza. Os “brancos” não se vêem como parte do mundo natural e, por isso, fabricam o seu próprio mundo paralelo e artificial, materializado nas cidades; as selvas em pedra. A natureza e seus recursos, neste sentido, tornam-se passíveis de serem explorados indiscriminadamente. O sistema de pensamento “branco” ocidental, portanto, estabelece uma funcionalidade as “coisas” do mundo natural, transformando-as em seus utensílios, considerados na perspectiva de acumulação, sendo então distribuídos desigualmente. 
            Brandão, ainda diz que, os “brancos”, por tratarem a natureza de forma hierarquizada, ou seja, submetida aos propósitos humanos, acabam projetando esta relação também às interações sociais, tornando, assim, “natural” um homem ser superior frente outro. Devido a estas diferenças, as sociedades ocidentais, se organizam de maneira desigual por entenderem que tudo no mundo natural é passível de conquista e dominação pela técnica; até mesmo outros homens. Aqui, podemos nos lembrar do extermínio das populações indígenas da América e dos escravos africanos. As sociedades indígenas, contudo, por estabelecerem uma relação de trocas (dívidas-dádivas), entendem que a natureza possui grau de parentesco e, por isso, não pode ser conquistada, dominada ou comercializada.
            Enfim, o que se percebe neste exercício são as diferentes formas de cultura e alguns traços gerais que as caracterizam e que se tornam para um pesquisador das sociedades modelos explicativos plausíveis. O estudo do mito parece servir como um bom laboratório de observação dos modos pelos quais se organizam uma determinada coletividade. Seja das selvas de árvores, seja das selvas em pedra. O mito é parte da cultura de cada povo, que por sua vez, é a forma pela qual os homens representam o tipo de relação que eles estabelecem com o mundo natural.
           

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