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domingo, 20 de março de 2011

Devanio Urbano: J.

            Na escola, aos nove anos, parecia ser um menino qualquer. Taciturno, despercebido, pálido, meio raquítico e disléxico. Motivo pelo qual seus colegas de classe lhe prestavam um número variado de zombarias. Em casa, sua mãe o chamava de Juliano. Na rua, entre os outros moleques, era chamado simplesmente de J. . Tinha mais dois irmãos entre os quais era o primogênito. Seu pai era profissional da construção civil e sua mãe era diarista, J. aprendeu desde cedo os códigos normativos da periferia. Seu pai chegava a sua casa, diariamente, embriagado. Entorpecido e violento, ele espancava a mãe e a todos os filhos. Em seu emprego, a mãe tentava sempre omitir o que lhe causava tantas manchas roxas pelo corpo.
            Por muitos anos J. foi um assíduo telespectador do espancamento de sua família, até a denúncia feita por parte de uma vizinha indignada com a situação. Dona Rita, mãe de J. tomou coragem e deu parte do marido. Depois de exames de corpo de delito, a ocorrência policial foi taxativa em constatar mais um caso de violência doméstica. J. e seus irmãos também fizeram exame, motivando a polícia a pedir prisão preventiva do pai agressor. Depois do ocorrido, J. e seus irmãos nunca mais o viram. Na escola em que estudava todos ficaram sabendo do ocorrido, fato que certamente contribuiu com o descrédito conferido a ele frente aos professores e aos colegas.
            Agora, filho de uma família desestruturada, filho sem pai, J. aprendia outras lições que escapavam ao que os professores propunham em suas aulas. Na periferia todo moleque, obrigatoriamente, deve ser bom de briga e bom de bola. Seu sucesso neste meio depende de sua habilidade com estas duas questões. J. destacava-se brigando. Defendia-se de seus colegas que tentavam impor a ele uma série de humilhações. Mas aos olhos dos professores, quem causava todas as desordens era o J.. Seu comportamento aliado ao seu baixo rendimento escolar proporcionou, ao longo dos anos, o afastamento do pequeno J. dos bancos escolares.
            Era na rua, entre seus amigos, que sua vida ganhava sentido. Na rua ele não era humilhado, nem considerado atrasado ou incapaz. Na rua, aos treze anos, conheceu a maconha e, quando não a tinha, usava cola de sapateiro com solvente, produto de fácil acesso para menores onde morava. Aos quatorze, sua mãe já não geria nenhuma autoridade sobre ele. Envolveu-se em pequenos furtos e, aos dezesseis foi recolhido a Fundação de Atendimento Socioeducativo (FASE). J. colecionava em sua ficha, entre outras coisas, assalto a mão armada, motivo pelo qual foi condenado a ficar até os dezoito anos recebendo as penas que a lei julgava ser eficiente a um menor infrator.
            Durante o cumprimento da pena, sua mãe o visitou poucas vezes. Teve como grande amigo um menino chamado Tiago, recolhido a FASE por latrocínio. Tiago foi libertado dois meses antes de J. , que prometeu encontrá-lo após a libertação. Depois de passado os dois meses, Tiago e J. reencontraram-se. Tiago, de temperamento explosivo e muito agressivo, gostava de cerveja e Cocaína. J., então, passou a conhecer uma poderosa droga. Bastaram algumas carreiras para o raquítico J. ficar completamente viciado. Os dois ainda eram acompanhados pelo Poder Público, que visava garantir a reintegração completa dos dois novamente à sociedade; isso durante seis meses, a contar da data de libertação. A primeira exigência feita pelo juiz da Vara da Infância e da Juventude a eles obrigava-os a arrumarem um emprego.
            Contudo, os empregadores, todos, mostravam-se relutantes a darem uma vaga de emprego a menores infratores. Diziam os empregadores que eram meninos sem confiança. J. e seu amigo Tiago encontravam-se em uma estranha fronteira. No fundo, desejavam participar das coisas do mundo lícito e “perfeito”, contudo, eram excluídos dele na mesma medida em que tentavam integrá-lo. Eram estranhos nesse meio. Como se pisassem pela primeira vez em terra firme. Mas o mundo dos homens escolhe seus homens. Escolhe àqueles que carregam a marca dos aptos a fazer parte dele. Segrega e elimina àqueles cujo destino, na verdade vontade dos homens, julga não ser alguém que possa fazer parte da grande coletividade.
            J. e Tiago, agora, andavam por estreitos corredores, escuros e úmidos, cuja direção, mesmo incerta, levá-los-ia novamente ao ponto de partida. Na certa voltariam aos delitos. Pobres garotos. Carregavam em si um ódio silencioso, porém mortífero. Não podiam compreender.  Não compreendiam o porquê de não terem a confiança da sociedade que esperava deles o fim de seus desvios. Porém esta mesma sociedade, ao mesmo tempo em que oferecia com uma das mãos ajuda, com a outra mostrava o açoite. Disse um poeta, uma vez, que a mão que afaga é mesma que apedreja. Na certa, J. e Tiago compreendiam muito bem esta metáfora.
            Sem chances no mundo dos homens, continuaram a fazer o que de certa forma foram imbuídos de fazer. Era uma noite de inverno dos idos de 2003. J. e Tiago haviam decido roubar carros, pois isso era coisa de homem. Roubar tênis e celular era coisa para meninos, ponderavam. Não precisavam nem usar armas. Apenas um pé-de-cabra e uma pedra bem pesada, capaz de estourar parabrisas. Nesta mesma noite, os dois amigos haviam tomado muito conhaque junto com algumas carreiras de cocaína. Era próximo das 23 horas quando decidiram sair às ruas. Não tinham muita experiência no ramo. Roubar carros não era tarefa muito fácil. Tinham de ser rápidos e discretos. Na vã filosofia de um jovem ladrão, o risco é compatível com a conquista do roubo. Quanto mais arriscado, maior é a glória do furto. Engana-se quem pensa que os ladrões roubam somente para sobreviver.
            J. e Tiago precisavam mostrar ao mundo do que eram capazes. Andaram por metade da cidade e, enfim, encontraram um modelo de carro que estava do agrado. Era um modelo esportivo, daqueles que alimenta os sonhos de consumo de muitos. Combinaram-se, partiram em direção do automóvel. Enquanto um arrombava o outro ficava vigiando. Tiago estourou o parabrisas e, então, o alarme disparou. Apavorados, os dois apressaram-se. Mas o barulho do alarme chamou atenção da vizinhança. Um homem de meia idade veio até a sacada do prédio em que morava para ver o que estava acontecendo. Foi então que avistou, entre a escuridão e a luz, os dois garotos no meio de toda a ação. O homem era policial aposentado. Correu em direção ao interior de seu apartamento, pegou sua arma, uma pistola automática, e voltou rápido à sacada.
            Os meninos não haviam percebido que estavam sendo observados. Ao abrirem a porta do carro ouviram um disparo que acertou o asfalto. Tiago viu o homem atirar mais uma vez acertando a lataria do carro. J., sem saber o que fazer, decidiu sair correndo. Tiago ficou paralisado. Olhou para o homem na sacada do prédio com a arma em punho, preparando-se para mais disparos. J., já a uma certa distância, corria o mais rápido o quanto podia. Tiago ouviu mais três disparos e seu amigo sumiu na escuridão. O homem decidiu descer. Tiago, percebendo a movimentação, correu na mesma direção de J.. Depois de alguns metros encontrou J. caído. Tentou levantá-lo. Percebeu que havia um rombo em sua cabeça e dois grandes buracos em suas costas de onde saia muito sangue.
            Apavorado e sem saber o que fazer, Tiago foi correndo para a casa de sua irmã, onde contou todo o ocorrido. O policial inativo veio até a rua junto com seus filhos, já adultos. Encontrou o corpo de J. caído embebido em uma poça de sangue. Ao perceber que havia o matado, o homem desesperou-se. Imediatamente, ele convocou alguns vizinhos para servirem como testemunhas. Na versão contada por ele, durante o registro de ocorrência, disse aos policias que o menino tentou invadir sua casa ameaçando-o com o pé-de-cabra. Dias depois, Tiago compareceu a polícia para relatar o que tinha acontecido naquela trágica noite em que perdeu seu amigo. Seu relato não entrou nos altos do processo. Não foi feito nem o teste de balística no corpo de J.. O caso foi arquivado.
            Tiago por ter sido menor infrator e depois da maioridade ter algumas passagens pela polícia, não recebeu credito algum no depoimento que prestou. O homem que assassinou J., com três tiros pelas costas, tinha influência no departamento e conhecia o juiz da vara criminal desde a infância. O velho policial era um homem respeitado por seus vizinhos. Sua ação foi entendida como sendo em defesa da comunidade. Os vizinhos ainda diziam que o assassinato de J. era justificável, pois tratava-se de eliminar mais um vagabundo do mundo. O caso foi noticiado pela imprensa local com o título “policial mata ladrão que tentava assaltar sua casa”. Imaginem o que pensava a mãe de J. que chorava aos prantos sobre o caixão do filho. Em que justiça ela acreditaria? J. enquanto viveu não poderia compreender que o mundo dos homens não havia deixado espaços para ele. Sua morte integrou as estatísticas e sua vida passou despercebida.

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