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sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Memórias de Iñaduvy


ILMO. EXL. Senhor General Sepúlveda Alcântara.

Ofício em resultado aos ocorridos na Vila do Porto Alegre.

            Era um dia cinzento. As tropas já se encontravam exaustas da marcha iniciada na Capela de Santa Maria rumo a Vila de Porto Alegre. Ao chegar às imediações da referida Vila, tivemos a chegada dificultada pela cheia do rio Jacuí, alagado pela chuva torrencial da última madrugada. Perdemos alguns cavalos durante a difícil travessia. Sorte que podemos resgatar boa parte de nossos suprimentos antes que a grande correnteza lhes desse outro destino. Depois de atravessar o caudaloso rio Jacuí, paramos para conferência de tudo quanto levávamos. De onde paramos, podíamos ver a grande planície onde se localiza Porto Alegre. Ao nos aproximar, podia se ver mais claramente a quantidade de inimigos que transitavam como sentinelas.
            Chegamos ao início do dia e tratamos de nos posicionar. Misturávamos entre a espessa relva que nos servia de apoio para confundir o inimigo. Chegávamos cada vez mais perto da Vila e mais claramente via-se o número grande de soldados castelhanos. Não teríamos a mínima chance, pois eram em grande número, muito maior que os nossos. Mesmo com toda a coragem, mesmo lutando pelo nosso Império e pela Augusta Majestade do Brasil, seria suicídio atacar aqueles castelhanos de peito aberto. Estava eu com 20 valorosos guaranis da Aldeia de Santa Maria, junto com o destacamento do Castilhano Capitão do Mato Liandro, de mais 12 negros escravos, que receberam como promessa a graça da liberdade e outros que queriam apenas os espólios junto aos inimigos que derrubassem. O Capitão de Ordenanças da Vila da Caçapava, o mulato André, também trazia consigo mais 18 milicianos, distribuídos em pardos alforriados e outros homens brancos que vieram da Vila da Sorocaba tentando melhor sorte nesta fronteira.
            Discuti com os outros sobre como entraríamos na Vila. Descartamos o assalto, não haveria a menor chance. Os castelhanos distribuíram várias peças pelas vias de acesso a Vila. Também colocaram sentinelas por toda a parte. Também não poderíamos ficar ali até anoitecer, pois seriamos descobertos e trucidados pelos malditos castelhanos. Pensei em enviar um mensageiro a Rio Pardo solicitando reforço de praças, no entanto, seria outra ideia inviável, advertiu-me o Castelhano Liandro. Disse em voz alta que tinha a solução para nossa investida. Ao ouvir sobre a ideia de enviar um mensageiro, disse que não poderíamos perder aquela posição. Foi então que teve uma ideia, um tanto audaz, e que dependeria de muita sorte; um verdadeiro golpe do destino. Liandro, o castelhano, assim conhecido entre os milicianos, era natural da extinta missão do pueblo de San Francisco de Borja, antigo domínio espanhol, tomado por nossa gente valorosa, aos comandos de Borges do Canto, em 1801.
            Lá, Liandro aprendeu as letras da língua espanhola, as lides do campo, a doma de cavalos, as artimanhas do contrabando e sua especialidade que é capturar escravos fujões. Neste negócio, o castelhano lucrou muito. Em muitas vezes, ele capturava o negro e o revendia para os vecinos da Banda Oriental e para os castelhanos de Corrientes, tendo já recebido dos senhores brasileiros muitos patacões para realizar a busca. Outras vezes, ele deixava o escravo atravessar a fronteira cobrando do negro algum valor, dizendo depois que nunca tinha o visto. Não foi diferente quando se dirigiu a nós. Entre um e outro gole de aguardente, disse que tinha um plano e digo que nenhum outro general, ensinado nas artes da guerra, em qualquer lugar de qualquer corte, seria capaz de tê-lo.
            Disse ele que escreveria de seu próprio punho um ofício, fazendo-se passar por um general castelhano, de nome Escobar, conhecido e temido na Fronteira de Missões. Remeteria ofício ordenando o destacamento castelhano a abandonar a Vila de Porto Alegre, obrigando-os a apresentarem-se as margens do rio Uruguai para combater forças brasileiras. Ao redigir o ofício na língua espanhola, Liandro dobrava-se em gargalhadas, tonadas de forma diabólica. O Capitão André olhava com receio, mexendo os ombros; na certa pensava que o plano não daria certo. Depois de ter terminado de escrever, rubricou o papel e o timbrou com um anel que arrancou de um oficial correntino. Chamei um guarani, bom cavaleiro, de nome Felipe Santiago para ir até a Vila entregar o ofício aos castelhanos. Foi advertido por Liandro que, ao chegar a Vila, deveria falar-lhes em guarani para que, então, fosse levado até o oficial chefe, onde seria recebido por este, junto de um interprete guarani.
            Felipe Santiago, guarani bravo do qual tenho a honra de comandar, partiu em disparada em seu matungo. Ficamos a observar entre a relva enquanto ele partia até a entrada da Vila. Foram instantes de grande pavor. Todos apreensivos, ficavam de cochichos. Na certa ninguém esperava o que poderia acontecer. No meio da guerra, algumas decisões são solitárias, mas se vier a derrota em função delas, a desgraça é de todos. O guarani Felipe conseguiu chegar às sentinelas. De longe, podíamos ver que havia conseguido passar por eles e, naquele momento, o encaminhavam para o oficial, dando alguma esperança para o nosso desesperado plano. Após algum tempo, Felipe Santiago deixou a Vila e vinha em nossa direção. Ele era todo sorrisos; parecia um moleque.
             Dei ordens a ele para relatar o que tinha acontecido no interior da Vila. Perguntei-lhe se tinha estado na presença do oficial chefe. Respondeu-me que sim. Disse que havia conversado com um Marechal de Campo por nome de Manuel Garcia. Perguntei-lhe se havia entregado o ofício. Respondeu-me que sim, e que havia também a resposta do ofício junto ao corpo. Tirou de seu bolso um papel de baixa qualidade em que estava a resposta ao ofício que havíamos remetido. Nele, dizia que as ordens do General Escobar deveriam ser seguidas e que o mais rápido possível estaria com suas tropas às margens do rio Uruguai. No ofício escrito por Liandro havia um pedido expresso aos castelhanos que abandonassem todo o armamento e mulas para a viagem ser mais rápida e que ninguém ficaria na Vila, ela deveria ser abandonada. Prontamente, os castelhanos levantaram acampamento e começaram a debandar.
            Depois de algumas horas fomos até a Vila, sempre vigilantes, para evitar tocaia dos inimigos. Ao chegar lá, não avistávamos nenhuma alma. O castelhano Liandro prendeu um grito dizendo: “arruma o fogo que hoje vai ter fandango”. Não acreditávamos. Seu plano havia funcionado. Trataram logo de matar uma vaca gorda deixada pelos castelhanos. Não só isso, como também muita aguardente, vinho e charque. Ao cair da noite, aproximaram-se do fandango algumas chinas que traziam crianças em suas carretas. Perguntaram-me se poderiam se juntar aos nossos milicianos. Pensei em nossa marcha e, então, permiti que se desse a função. No final de tudo, ficamos com mais de cem cavalos, 30 peças de canhão, duzentos mosquetes; tudo abandonado por cerca de trezentos castelhanos persuadidos por um infeliz miliciano contrabandista. Reconquistamos a Vila sem perder um único homem e sem tirar nenhuma espada da bainha. E quem conta essa história acaba passando por mentiroso. Sorte a minha que eu estava lá e vi todo o ocorrido.
            E foi assim, Excelentíssimo Ilustríssimo General, que em nome de nosso Augusto Príncipe Regente, D. Pedro, conseguimos colocar a Vila do Porto Alegre no mapa de nosso glorioso Império, graças à astúcia do Castelhano Liandro.


                        Deus Guarde a Vossa Excelência.
                                                                                             
                                                                       Capitão-Mor dos Naturais Pedro Iñaduvy.

Capela de Santa Maria da Boca do Monte. 7 de Dezembro de 1822.

5 comentários:

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  3. Este é o primeiro de uma série de contos que formam as memórias do índio Iñadudy, personagem criado por mim, narrador de batalhas épicas que apresentam o Rio Grande do Sul do século XIX como palco de todas as histórias. Elas não seguirão nenhuma ordem. Ao longo das postagens aparecerão outros personagens que serão gradualmente apresentados.

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  4. Eheh...muito massa!! Até parece que conheço alguém que tem ideias parecidas com a do tal Castilhano...

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  5. Estimado senhor Índio e amigo o Capitão Iñanduvy

    Eu cá de meu lado me manifesto muito satisfeito com vossa iniciativa em atacar os castilhanos que haviam tomado de assalto a cidade de Porto Alegre. Os sucessos relatados em seu próximo passado ofício muito honram o serviço que temos prestado a sua Augusta Majestade o Imperador do Brasil e que com a graça de Deus o será também de todos os malditos castilhanos de Quaraym para o sul.
    Os feitos do Cptam. Castilhano Liandro muito me impressionaram por sua astúcia e engenho. Eu mesmo sou conhecedor das artimanhas desse moço e sei que é milhor empregal-as em nosso favor do que tel-as de contra nosoutros.
    Chego, inclusive de cogitar a elevação de sua patente ao posto de Sargento-Mor, porém receio criar cizânea na tropa, por não se tratar de um súbdito de Sua Majestade e sim de um castilhano arrenegado.
    Convém tratarl-e com os devidos respeitos e sem pouparl-e as honrarias que le são devidas, tendo, porém, o cuidado de o cobrir de mimos, pois que é homem valoroso mas nasceu entre os inimigos da Nação.
    Desejo a Vossa Excelência muita saúde e força.

    General Luís Augusto Sepúlveda Montinhos de Góes dos Muitos Alcântaras de Brás e Silva
    General Comandante das Fronteiras de Ibicuí e todas mais que se puder ir empurrando os castelhanos Rio da Prata adentro que se afoguem todos com a graça de Deus

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